As memórias afetivas sempre tiveram um forte impacto sobre o ser humano. Sejam elas visuais, auditivas, sensoriais, olfativas ou gustativas, o consumo de elementos que remetam a infância, experiências antigas ou que revisitem boas lembranças do passado manifestam uma sensação de nostalgia, quase como um desejo de voltar no tempo.
A nostalgia é um movimento que tem crescido nos últimos anos, principalmente entre a geração Z (Gen Z). Da moda, ao cinema; da música, a literatura; da tecnologia, a gastronomia: a procura por produtos e serviços que despertem memórias de infância e da adolescência se tornou constante por parte de pessoas nascidas entre meados da década de 90 e 2012.
A NRF Retail’s Big Show, uma das maiores feiras de varejo do mundo, realizada anualmente em Nova York, trouxe algumas tendências que devem estar no radar dos empreendedores do setor. E uma delas é a própria nostalgia: o seu uso enquanto ferramenta de memória afetiva e humanização do relacionamento com o cliente pode trazer destaque para o estabelecimento, uma vez que a Gen Z está disposta a investir em experiências que remetam às lembranças do passado de uma forma mais sensível.
Os consumidores brasileiros também têm acompanhado esse interesse mundial pela nostalgia. Um levantamento divulgado em 2023 pelo Kantar World Painel revelou que 30% dos clientes estão procurando por alimentos que remetam a memórias afetivas e tradições familiares, de forma que produtos e serviços nessa linha têm apresentado aumento significativo. Ou seja, restaurantes e outros negócios relacionados que investem em experiências com foco em rememorar lembranças tendem a ser destaque e a atrair um público fiel à vivência que ele oferece.
Nostalgia na prática
A identificação de uma clientela fiel à marca, que por muitos anos se desenhou como elemento representativo de construção de memórias afetivas e especiais entre casais, amigos e famílias inteiras, foi um dos fatores que fizeram a Galeteria DuChiquinho, tradicional restaurante localizado em Natal, capital do Rio Grande do Norte, voltar a ser um dos estabelecimentos mais procurados na região, mesmo após anos fechado.
Hoje o galeto é o mesmo da época, e o ambiente foi mantido o mais fiel possível. A nostalgia se tornou uma poderosa turbina para o negócioThiago Haddad Fundada em 1976, a Galeteria DuChiquinho surgiu em uma região boêmia de Natal, em uma época que não havia muitos restaurantes na cidade. Por isso, o local se tornou referência, e centenas de pessoas, de crianças a idosos, e diversos artistas e famílias tradicionais frequentavam o espaço, fazendo dele um grande sucesso.
Chiquinho, o seu fundador, no entanto, era resistente a mudanças, fossem elas na estrutura do cardápio ou no acompanhamento dos pratos. Após o seu falecimento, os filhos assumiram o negócio e promoveram algumas alterações, inclusive, com foco na expansão da empresa, o que fez com que a galeteria chegasse a ter outras unidades.
“Porém, por conta de conflitos familiares e problemas na administração, a galeteria fechou em 2002, deixando um legado de fãs. Após o fechamento, ao longo dos anos, cerca de oito estabelecimentos tentaram ocupar aquele mesmo ponto, localizado em uma área de grande fluxo de pessoas, mas nada ali funcionava. O local estava fechado desde um pouco antes da pandemia”, conta Thiago Haddad, um dos atuais sócios da galeteria.
Filho de empreendedores, proprietários de outro famoso restaurante em Natal (o Conchichina), Thiago, inclusive, foi um dos idealizadores do retorno da Galeteria DuChiquinho. A amizade entre a sua família e a dos donos do negócio, lhe proporcionou inúmeros momentos especiais. Um dia, ao receber uma foto antiga do local — que até então estava completamente abandonado — surgiu o desejo de que o lugar voltasse a funcionar.
“Eu tinha memórias muito nostálgicas de lá e senti que quem reabrisse aquele negócio ia fazer um grande sucesso. Foi então que uma voz interior sussurrou: ‘Por que não eu?’ Eu já somava 28 anos de experiência em gastronomia e conhecia bem o legado da galeteria. Mesmo com o ponto completamente depredado, entrei no site de patentes e descobri que o registro da marca estava extinto há 17 anos. Naquele momento, o bichinho do empreendedorismo me picou — e eu guardei a ideia só para mim. Poucos dias depois, recebi uma ligação: eu havia ganhado, em um sorteio da Abrasel, um registro gratuito de marca e patente. Era o sinal que precisava”, falou.
Não foi um processo fácil, mas os encontros no dia a dia contribuíram para animarem Thiago no processo de reconstrução da galeteria. Enquanto estava no Conchichina, ele conheceu um senhor chamado Laurindo, que procurava por uma vaga como cozinheiro. Coincidentemente, ele foi um dos trabalhadores da era de ouro DuChiquinho: sabia exatamente como era feito os pratos, os temperos únicos e as receitas especiais. Os caminhos cruzados com os de Laurindo promoveram o reencontro do cozinheiro com Paulo, filho do Chiquinho e que foi um dos proprietários do restaurante. Isso tudo acendeu em Thiago o desejo de manter, exatamente, a mesma estrutura e cardápio do estabelecimento.
Resgatando memórias
Com a reabertura da Galeteria DuChiquinho não demorou para que clientes que construíram importantes memórias afetivas no passado voltassem a frequentar o lugar. Uma das histórias contadas por Thiago e que mais o emociona, é a de um senhor que, certa vez, estava sentado sozinho no balcão, chorando, enquanto comia.
“Eu fiquei preocupado quando vi, pensei que tínhamos deixado algo a desejar no atendimento. Mas ele virou para mim e disse que eu não fazia ideia do que tinha feito quando reabri o restaurante. Isso porque quando ele era criança, todos os domingos saía para pescar com o pai e na volta, eles sentavam ali e almoçavam juntos, conversavam, e o pai compartilhava diversas histórias com ele. E que agora, naquele momento, sentindo o mesmo cheiro dos pratos e estando naquele ambiente, ele conseguia sentir a presença do pai que já tinha falecido. Sempre me emociono muito quando conto esse relato”.
“Eu costumo dizer que os clientes não vêm apenas para comer. Eles vêm para reviver um tempo guardado na memória. Isso traz uma responsabilidade enorme, porque eu e meus sócios estamos dando continuidade a uma história que não é nossa. Por isso, fazemos questão de oferecer o melhor atendimento e o melhor produto possível. E os frutos têm vindo: tanto no lado financeiro quanto, principalmente, no emocional”, completa.
Esta conexão é passada de pai para filho, como conta Thiago a partir de outro relato. Em um dos dias em que o restaurante ainda estava fechado para reforma, mas que a equipe atendia amigos e familiares para testes, entrou uma família no local.
“Um dos senhores me contou, emocionado, que nunca pôde comprar um galeto na época em que o restaurante estava aberto, porque ele trabalhava como estivador e usava tudo o que ganhava para pagar os estudos dos filhos. Hoje os filhos são formados e estavam ali com ele para pagar o almoço que ele nunca conseguiu arcar”.
“Foi uma cena muito bonita. Enquanto comiam, ele mastigava o frango de olhos fechados, saboreando cada pedaço com uma expressão de quem estava revivendo o passado. Os filhos também adoraram. Percebi ali que os nossos clientes não vêm apenas para comer, mas eles vêm com sede de nostalgia. Vêm para reviver um tempo que marcou suas vidas”, completa.