A comunidade LGBTQIAPN+ movimenta uma fatia significativa da economia brasileira — e bares e restaurantes têm papel central nessa dinâmica. Mais do que pontos de encontro, esses estabelecimentos se tornaram espaços de acolhimento, expressão e resistência, refletindo a importância da diversidade não apenas como valor social, mas também como estratégia de negócio.
“O mercado LGBTQIAPN+ movimentou R$ 18,7 bilhões no país no ano móvel encerrado no primeiro trimestre de 2024, um crescimento de 39% em relação ao ano anterior. Este aumento reflete a crescente importância econômica dos lares LGBTQIAPN+ e seu impacto no mercado de consumo”. Além disso, “o estudo revela que 5% das residências brasileiras têm pelo menos um integrante LGBTQIAPN+, totalizando mais de 2,8 milhões de domicílios. Este número sobe para 15% entre os respondentes online, mostrando uma sub-representação significativa nos dados tradicionais.”
O trecho, citado no estudo “Rainbow Homes”, da NielsenIQ Brasil, dimensiona o poder de consumo da comunidade LGBTQIAPN+ no país como uma potência econômica que transcende números e se reflete diretamente na cultura, na sociedade e, de forma muito particular, no setor de alimentação fora do lar.
Diante dos dados, podemos pensar: como se manifesta o consumo e qual a real importância da economia da diversidade para bares e restaurantes no Brasil? Antes de respondermos essa questão é importante que seja entendido o contexto e o porquê se celebra o Mês do Orgulho.
Anualmente, no dia 28 de junho, comemora-se o Dia do Orgulho. A data é um lembrete das conquistas, mas também das lutas, desafios e possibilidades que perpassam cada uma das pessoas representadas pela sigla LGBTQIAPN+ em sua individualidade. Seu marco histórico, a Rebelião de Stonewall em 1969, não aconteceu em um parlamento ou em uma praça pública, mas em um bar.
O Stonewall Inn, conhecido refúgio para o público gay em Manhattan, Nova York, era alvo de recorrentes e violentas batidas policiais. A revolta que ali eclodiu deu início ao movimento moderno pelos direitos civis da comunidade. Essa origem, intrinsecamente ligada a um espaço de socialização e consumo, revela a profunda conexão entre a comunidade e os bares e restaurantes, um vínculo que permanece vivo, intenso e economicamente vital.
Hoje, a comunidade não é composta apenas pelos frequentadores, mas também os empreendedores que transformam seus estabelecimentos em muito mais do que pontos comerciais. Eles são, em essência, construtores de comunidades, de espaços seguros e catalisadores de uma economia que valoriza experiências genuínas.
Para entender como essa dinâmica opera na prática, conversamos com quatro empresários do setor que, por caminhos distintos, colocaram a comunidade LGBTQIAPN+ no centro de seus negócios.
A construção do espaço
Para alguns, criar um ambiente acolhedor para a comunidade LGBTQIAPN+ não foi um plano de negócios, mas uma consequência natural de suas próprias vivências e redes de afeto. É o caso de Estela Paes, do Narciso Café, na Vila Buarque, em São Paulo.
Eu faço parte da comunidade e poder oferecer uma casa segura, com qualidade, conforto e entretenimento no meio da maior rua LGBT da América Latina é uma realização pessoal Leandro Savazzi. “Na verdade, não pensei em ser um estabelecimento LGBTQIAPN+. Foi um processo natural: essa é minha turma, meus amigos”, diz a empresária. A fala de Paes revela um movimento orgânico, onde o negócio se torna um espelho da vida pessoal de quem o comanda. O resultado, segundo ela, é a normalização da experiência: “Sinto que as pessoas se sentem acolhidas”.
Um percurso semelhante foi trilhado por Fillipe Figueiredo, proprietário da Esquenta Espetaria, na Savassi, em Belo Horizonte. Há quase dez anos no mesmo ponto, ele conta que o foco no público não foi deliberado.
“Na verdade, empreender para esse público foi por acaso. Eu entrei no bar porque ele havia quebrado com poucos meses de funcionamento, foi uma questão de oportunidade de mercado, mas foi bem positivo e estou aí até hoje nessa missão, de servir bem e com respeito ao público”, relata.
A oportunidade de mercado se transformou em uma década de aprendizados: “Me trouxe vários ensinamentos para minha vida que talvez não teria essa oportunidade em outros lugares”, acrescenta Figueiredo.
Outros empreendedores partem de uma intencionalidade clara, movida pela própria identidade e pela vontade de preencher uma lacuna do mercado. Daniel Horta, sócio de estabelecimentos como o Mafu Bar, o Bar Frat Borba e o Lado Burger, todos estrategicamente localizados na Rua Maria Borba, em São Paulo, um conhecido polo da cena alternativa, explica sua motivação. “Como homem gay, de 37 anos, foi natural para mim querer criar espaços onde a comunidade pudesse se sentir completamente à vontade, sem precisar ‘se encaixar’ ou se podar”, afirma.
Essa mesma intencionalidade é compartilhada por Leandro Savazzi, do Mantra Bar, na conhecida Rua Augusta, também em São Paulo. Para ele, a escolha foi também uma forma de realização pessoal.
“Eu faço parte da comunidade e poder oferecer uma casa segura, com qualidade, conforto e entretenimento no meio da maior rua LGBT da América Latina é uma realização pessoal”, destaca.
Seja por vocação ou por um plano consciente, o destino desses negócios converge para um ponto em comum: a criação de ambientes onde a liberdade, a segurança e o respeito são os ingredientes principais.
Pinkwashing
Em um mercado cada vez mais ciente do "Pink Money", surge um desafio crucial: a experiência genuína e diferenciada. A linha que separa o apoio genuíno do "pinkwashing" — a prática de usar a causa LGBTQIAPN+ como mera estratégia de marketing, especialmente durante o Mês do Orgulho — é tênue, mas o público sabe identificá-la. Para os entrevistados, ser verdadeiro é a única forma de sobreviver e prosperar.
O desafio é não cair no ‘pinkwashing’, é ser verdadeiro no compromisso com a comunidade, o ano inteiro, e não só em datas como a Parada. É ter uma equipe diversa, respeitosa, que entenda essa proposta Daniel Horta Horta é enfático sobre essa questão. “O desafio é não cair no ‘pinkwashing’, é ser verdadeiro no compromisso com a comunidade, o ano inteiro, e não só em datas como a Parada. É ter uma equipe diversa, respeitosa, que entenda essa proposta”, explica. O empresário detalha que essa filosofia e metodologia de trabalho se materializa em todos os aspectos de seus empreendimentos: “A influência do público LGBTQIAPN+ é total, está no clima da casa, nas festas, na trilha sonora, nos drinks e, principalmente, nas relações que se criam ali. Ver as pessoas se apropriando do espaço, se sentindo em casa, é uma das maiores recompensas”, conta Horta.
Toda essa filosofia se traduz em um ambiente onde o respeito é a norma, e não a exceção. Figueiredo, da Esquenta Espetaria, observa como essa cultura molda o próprio público.
“[A comunidade LGBTQIAPN+] É meu público majoritário, portanto, vemos que aqueles que não têm respeito não se sentem confortáveis no local”, detalha. A fidelidade do cliente torna-se, então, uma consequência direta desse conforto. “Trata-se de um público bem cativante e fiel ao local. Ainda que hoje em dia o preconceito seja menor, ele ainda existe em alguns locais, e saber que no meu estabelecimento eles se sentem confortáveis é bem prazeroso”, complementa.
Savazzi aponta que essa conexão genuína abre portas para uma comunicação mais criativa e próxima. “No Mantra somos muito criativos, e comunicar para a comunidade LGBTQIAPN+ nos permite brincar com a nossa criatividade. É um público crítico e que busca por qualidade, mas, ao mesmo tempo, nos permitem e aceitam uma comunicação leve, descontraída e próxima, além de nos deixar ousar em algumas ações”, detalha.
Acolher, pois, vai além de uma placa na porta; é um processo contínuo que envolve treinamento de equipe, comunicação assertiva e, acima de tudo, escuta ativa. “É um público que tem uma união forte e que gosta de voltar onde se sentem bem e são acolhidos, que é o caso do Mantra, que é um dos pontos que mais prezamos. Já fizemos alguns treinamentos com a equipe especialmente sobre o tema justamente para sermos acolhedores”, conclui.
Um mercado diverso
Empreender no Brasil é uma tarefa árdua, e os desafios são muitos, desde a carga tributária até a gestão de pessoas. Para os negócios focados na comunidade LGBTQIAPN+, há camadas adicionais de complexidade, mas também oportunidades únicas.
Quando o público percebe que aquilo ali é para eles, de verdade, você cria um laço muito forte, que vai além do consumoDaniel Horta Paes pondera que muitas dificuldades são universais: “Acho que o desafio do negócio não está ligado a atender a comunidade LGBTQIAPN+ ou qualquer outra. As dificuldades são inerentes ao dia a dia do negócio”.
Um dos desafios mais citados entre os donos de bares, pubs, casas noturas, restaurantes e relacionados é interno: garantir que toda a equipe compartilhe dos mesmos valores de respeito.
Figueiredo é transparente sobre essa dificuldade. “Nossos desafios estão inclusive em funcionários que não têm respeito com o público, mas estamos completando 10 anos e sempre superamos esses desafios. Antes era mais difícil devido ao preconceito, hoje as coisas estão mais tranquilas nesse sentido”, conta, mostrando uma evolução positiva ao longo do tempo.
A grande oportunidade, como apontado por todos, reside na criação de um laço que transcende a relação comercial.
“Quando o público percebe que aquilo ali é para eles, de verdade, você cria um laço muito forte, que vai além do consumo”, resume Horta. Seus bares, como ele descreve, são “espaços de convivência, de expressão, de encontros”.
Essa visão é corroborada por Savazzi, que vê em seu bar uma ponte para o diálogo. Mesmo com o foco na comunidade, o Mantra Bar atrai um público diverso, promovendo uma integração enriquecedora.
“Ainda assim, hoje também atraímos muito o público hétero por conta da temática da casa (astrologia), e estamos conseguindo fazer com que esse outro público conheça um pouco mais da nossa comunidade e cultura, mitigando preconceitos e conseguindo fazer com que vejam um pouco mais da comunidade de forma leve”, finaliza.
Ocupar e transformar
O potencial de consumo da comunidade LGBTQIAPN+ no Brasil é mais do que um atrativo para investidores. Eles representam o poder coletivo de construir, sustentar e proteger espaços onde a existência é celebrada em sua plenitude.
A história que começou com um movimento de resistência à opressão em um bar em Nova York continua a ser escrita diariamente nos balcões, mesas e pistas de dança de estabelecimentos em São Paulo, Belo Horizonte e por todo o país.
Empreendedores como Estela, Daniel, Fillipe e Leandro demonstram que o verdadeiro "Pink Money" não é apenas o dinheiro que entra no caixa, mas o valor social gerado. É o poder de transformar um simples estabelecimento comercial em um refúgio, um palco, um ponto de encontro, em uma segunda casa. Eles mostram que servir a este público não é apenas uma questão de nicho de mercado, mas uma oportunidade de participar ativamente da construção de uma sociedade mais inclusiva e plural.
Como Daniel Horta coloca, bares e restaurantes “têm o poder de criar espaços de acolhimento e liberdade”. E, ao fazê-lo, eles não apenas garantem a lealdade de seus clientes, mas também honram o legado de Stonewall, afirmando que a celebração do orgulho é, e sempre será, um ato de resistência, comunidade e, por que não, um excelente negócio.