“A cozinha é o primeiro lugar onde a ideia precisa virar realidade”. Foram esses os dizeres que estavam no telão da apresentação da chef mineira Bruna Martins durante sua palestra no Palco Tendências, no Mesa SP, evento promovido pela revista Prazeres da Mesa, em São Paulo.
Em BH, Bruna está à frente de três restaurantes que simbolizam a boa gastronomia da cidade. Com pegada autoral, o bistrô Birosca ficou por 13 anos no cultural bairro de Santa Tereza e já foi visitado por Anthony Bourdain em um formidável episódio de seu programa Parts Unknown. Agora a casa está de mudança para o tradicional bairro de Lourdes.
O Florestal, no bairro Floresta, segue outro conceito: agricultura familiar, protagonismo vegetal e comidas do mundo. A chef fez um mapeamento extenso dos produtores locais de BH, para que não fosse apenas discurso, mas algo real.
“Houve uma época em que a fazenda do meu pai produzia 70% dos vegetais que consumíamos. Contratei um engenheiro-agrônomo, fizemos uma agenda de plantio. Me envolvi com a terra e vivi isso. Hoje, vejo que restaurantes fine dining do mundo inteiro têm essa pegada farm to table (do campo à mesa, em tradução literal). Poder viver isso criando meu próprio repertório foi fundamental”, disse Martins durante a palestra.
Já o Gata Gorda, inaugurado em 2024, no bairro Savassi, é considerado por ela “uma bodega moderna”. Em viagens para a Europa, o impulso da criatividade veio em tom de um restaurante mais pop, com comida europeia, mas sem ir para o francês ou italiano. “Me apoiei na Espanha e nessa fusão explosiva nasceu o branding da Gata Gorda” disse. Durante a criação, a chef escreveu o seguinte texto para se inspirar no cardápio:
”Cozinha alegre, vulgar, potente, carregada. Portunhol, azeite, páprica, embutidos e tomates maduros. Brasil e Espanha dançando ao som de flamenco e carnaval, pasodoble e piseiro. Tudo de melhor que temos em comum: tempero, suor e melodrama. Caetano cantando em ‘Fale com Ela’. Uma bodega moderna.”
Da linguagem criativa ao branding
Para Martins, hospitalidade não é apenas um atributo desejável — é uma ciência que demanda estudo e refinamento contínuo. A chef enxerga a hospitalidade como uma consequência natural de um restaurante que possui cultura própria, identidade clara e branding coerente.
Em suas casas, cada elemento — do prato ao uniforme, do ambiente à trilha sonora — está alinhado com a proposta conceitual, o que, segundo ela, contribui para a formação de uma experiência autêntica e memorável. Embora reconheça que há espaço para evolução, Martins defende que a hospitalidade emerge quando o negócio é construído com verdade e consistência.
À frente de três marcas com personalidades tão distintas, o desafio da chef é encontrar o tom certo para criar com coerência, palavra tão defendida por ela. “Em excesso, isso pode aprisionar, mas é fundamental para quem quer um restaurante com branding forte. Pelas cores, identidade visual, pratos, dá para ver o quanto me apoio nesse termo”, disse durante a palestra no Mesa SP.
Em seus restaurantes, tudo é alinhado com o conceito que as casas propõem: cores, pisos, plantas, vasos, texturas dos pratos e até copos de vidro reciclado. O Gata Gorda, por exemplo, tem certa inspiração nos cartazes, cores, sensualidade trazidos pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar, vencedor de dois Oscar com Tudo Sobre a Minha Mãe e Fale com Ela. A Birosca vai para o afetivo: bordado, mineiridade raiz e tipografia popular.
“Sou obcecada por decoração. Contratei arquitetos, mas todos os projetos foram coordenados por mim. Na Gata Gorda, fui ao Rio buscar azulejos em cemitérios de peças. Voltei com milhares e montei os painéis. No Florestal, contratei alguém para o plantio. Foram dois caminhões de plantas. A Birosca tem fotos antigas, receitas de vó nas paredes e louças antigas. Hoje é tendência: todo mundo usa louça antiga, mas quando comecei, era visto como estranho”, conta.
Pratos e criação
Na criação, a linha de raciocínio é clara. Martins se inspira para produzir tabelas e esboços de cardápios com referências diversas, desde digitais até literárias. A chef guarda inspirações também em pastas nas redes sociais Instagram e Pinterest – plataforma de descoberta visual onde os usuários encontram e salvam ideias, como receitas, inspirações de decoração e moda. “Comida, bar, salada, técnicas, massas, enfim, junto pontas soltas para criar pratos” revela.
Ainda assim, o que mais a transforma são as vivências. “Por isso, acredito que um chef que viaja amadurece, é transformador. Desde o segundo ano da Birosca, comecei a viajar duas ou três vezes por ano. Isso enriqueceu meu repertório e visão de mundo”, diz.
O livro “Como funciona elBulli”, do revolucionário chef espanhol Ferran Adriá, é uma das inspirações.
Com o subtítulo de “Uma Visão das Ideias, Métodos e Criatividade de Ferran Adrià”, o livro oferece um olhar por trás das cenas do elBulli, o melhor restaurante do mundo – fechado em 2012 – e sobre a mente de Ferran Adrià, um dos chefs mais criativos da atualidade.
Ilustrado com mais de 1.200 fotografias coloridas, “Como funciona elBulli” inclui também receitas e diagramas que revelam os segredos criativos por trás dos pratos espetaculares.
Acredito que um chef que viaja amadurece, é transformador. Desde o segundo ano da Birosca, comecei a viajar duas ou três vezes por ano Bruna Martins.
Gestão e liderança
Com o amadurecimento da carreira, a chef passou a assumir um papel mais estratégico na operação dos seus restaurantes. Embora não esteja presente diariamente na cozinha, ela se dedica à formação de equipes autônomas e alinhadas com os valores que estruturam suas casas.
Ela acredita que a solidez dos negócios está diretamente ligada à forma como compartilha conhecimento e conduz a gestão de maneira horizontal, criando vínculos fortes com os colaboradores, inclusive os levando em viagens profissionais como parte do processo de capacitação.
Sem formação gastronômica tradicional, Martins até reconhece suas limitações operacionais, mas vê na troca transparente e na ética profissional os pilares que sustentam a autonomia das equipes e a consistência das operações, mesmo em sua ausência.
Confira a seguir a entrevista da B&R com a chef mineira
B&R: Se hoje BH caminha para uma cena gastronômica mais cosmopolita e diversa, você é uma das responsáveis. Como foi o começo enquanto chef e gestora?
Bruna Martins: Quando comecei não tinha ambição de ser uma chef conhecida. Nem me chamavam de chef, eu era dona de um bar praticamente. Mas fui me interessando pela gastronomia e percebi que, por mais que me esforçasse, não era reconhecida.
Sofri críticas desproporcionais, até bullying na cena. Era machismo. Então decidi criar um espaço onde mulheres pudessem trabalhar comigo. Nós nos apoiamos, e isso me trouxe respeito. Também tive dificuldade de gerenciar homens no início, então foi uma escolha coerente com minha proposta gastronômica: comida mineira e afetiva. E quem sustenta a gastronomia brasileira são as mulheres, que perpetuam receitas.
O começo foi complicado, mas consegui sustentar minha posição. O restaurante [Birosca] tem 13 anos de história, muitas mulheres passaram por lá. Hoje vejo a cena gastronômica de BH cheia de mulheres e praticamente todas passaram pelas minhas cozinhas. É uma loucura, fico muito feliz.
O que te guia no processo criativo para gerenciar três marcas gastronômicas com personalidades distintas?
A palavra que me guia é “coerência”. Crio repertórios e faço escolhas que se encaixam no conceito que determinei. A Gata Gorda surgiu do desejo de ter um restaurante comercial. A comida europeia é muito comercial. Mas em BH, isso geralmente se baseia na culinária francesa ou italiana. Quis fazer algo espanhol, que me desse mais liberdade criativa. Sou uma chef muito criativa e queria algo pop. Brinquei com o espaço, decoração, trilha sonora, portunhol.
Em um relato em seu Instagram (@brunamartins.cozinha) você falou sobre a mudança de endereço do Birosca e o desafio de empreender em uma cidade não turística como BH. Como é empreender neste cenário?
Sobrevivência em BH é um desafio constante. A Gata Gorda está um pouco mais fácil. Parece que hoje o segredo é 80% ponto. Se você está num lugar com público disposto a gastar com gastronomia e faz um bom trabalho, será bem frequentado. Por isso levei a Birosca para o Lourdes. A Gata Gorda é um sucesso, mas duvido que teria o mesmo desempenho no Santa Tereza.
No podcast O Café e a Conta, conversamos com empresário Vitor Veloso (Pacato, Nimbos e Pirex) sobre esse comportamento do consumidor. Às vezes, o público paga caro no Rio ou em São Paulo, mas em BH, Porto Alegre ou cidades “fora do eixo” um drink autoral acima de R$ 35 já é considerado caro. Existe esse desafio de educar o público?
Sim, existe! O público de BH, mesmo com dinheiro, gosta de comida de boteco e de ficar em pé. Não temos a cultura de São Paulo, por exemplo, onde há desejo de gastar com bons vinhos e coquetéis. É um grande desafio. Nosso público tem uma cultura muito diferente.
