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Bares e botequins: do estereótipo ao capital econômico

Preá, retratista informal, sociólogo e “usuário de botequim” possui o projeto TraPo, o qual faz registro de bares tradicionais e populares. | Foto: Arquivo pessoal

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Sociólogo e fotógrafo, Preá, dispensa o olhar do estereótipo e aponta caminhos para o empreendedor acompanhar as transformações no mercado

Yasmim Paulino 25/11/2025 | 17:30

Os bares e botequins ocupam um lugar socioeconômico profundamente importante no Brasil. Esses pequenos comércios transitam pela memória afetiva de muitos brasileiros, escrevem a história das cidades e somam uma parcela significativa da economia do país. 

Mesmo com toda essa importância na vida de muitas pessoas, são crescentes as incertezas sobre o futuro dos botequins diante das mudanças no perfil dos consumidores que emergem das novas gerações. 

É nesse amplo cenário de transformações que os botequins vivem que se insere o trabalho de Eduardo Freitas, ou Preá, apelido pelo qual é conhecido nas redes sociais. Carioca de Volta Redonda, o pesquisador e sociólogo construiu uma comunidade online por meio do registro fotográfico dos bares que visita.  

Além da fotografia, Preá escreve sobre o cotidiano do botequim sob uma perspectiva mais ampla, construindo debates sobre esse universo com a sua experiência na pesquisa, mas, principalmente, a de “usuário de botequim” como se autonomeia. 

"A minha defesa de uma possível categorização do botequim não é elemento de nenhum debate público. Quando me perguntam o que é e o que define, tento sair do que eu acho muito estereotipado e caricaturizado", explica Preá. 

O trabalho do pesquisador conquistou seguidores pelo olhar cuidadoso, capturando as diferentes fachadas, os pisos, as fileiras de bebidas, os balcões e seus personagens com profundidade.  

Um dos retratos realizados em botequim em seu projeto de fotografias. | Foto: Preá

Um olhar que fere os bares e botequins 

Os bares são parte da memória afetiva de muitos brasileiros, seja por conta de laços familiares, pela comida ou pelas pessoas que sempre os frequentam e se tornam parte do lugar. Em paralelo, esses comércios são constantemente vistos sob um olhar que os fetichiza, destacando elementos físicos e hábitos em tom de deboche, dirigido não apenas ao botequim em si, mas também a quem os frequenta. 

“É o lugar da cerveja gelada, do ovo colorido, do pão com ovo de ontem. Enfim, alguns elementos que fazem parte de um imaginário coletivo de pessoas que não estão no botequim, mas que pensam que sabem o que é”, diz Preá. 

Segundo Preá, dentro da discussão sobre os bares e botequins, a única batalha que tenta travar é o perigo do olhar fetichizado ao espaço e às pessoas. Em texto publicado no Instagram, ele discute que “a precariedade e o popular não devem ser encarados como escolha curiosa ou opção cenográfica, é a realidade que se impõe sem ‘lero-lero’".  

A perspectiva do exótico acaba contribuindo para uma desvalorização do setor, ao invés de reconhecer e dignificar os empreendedores. “É preciso olhar para esses espaços com a seriedade que merecem, com a escuta do que revelam sobre o país”, pontua.  

Esse olhar ao que se refere acaba revelando um distanciamento que a maioria das pessoas tem sobre a realidade de quem empreende com botequins. “Nós também temos que olhar para o dono, que às vezes usa o espaço de uma cozinha insalubre, apertada e sem segurança”. Além da estrutura física, destaca que “temos que olhar para a saúde mental desse pessoal e fazer uma discussão sobre perspectiva do descanso”. 

Na tentativa de iluminar esse ponto de vista “pitoresco”, Preá propõe uma reflexão sobre o lugar que esses espaços possuem no cotidiano dos trabalhadores que, para ele, são a essência dos botequins. “De repente, quem acha curioso que alguém vá tomar uma cachaça sete e meia da manhã e comer uma linguiça é porque não seja muito atento a lógica do trabalho”, defende.  

Como o dono de botequim pode faturar? 

Para quem empreende em bares e botequins, um dos principais desafios para manter as portas abertas tem sido acompanhar as mudanças nos hábitos de consumo.  

“Durante muito tempo, o botequim foi um território compulsório de consumo. Todo mundo tinha que passar lá para comprar uma caixa de fósforo, a cachaça, o detergente, a banha de porco, o leite, a cerveja. Ele concentrava um tipo de comércio e o nosso modo de consumir mudou muito”, observa.  

As novas gerações já não se relacionam com a bebida alcoólica como antes e tem hábitos que se aproximam de uma vida mais equilibrada, que incluem beber menos álcool, dormir mais cedo, praticar atividades físicas. Isso tudo entra na hora das escolhas do novo consumidor, impactando diretamente no empreendedor de bares. 

"Você ir a um botequim hoje tem que ser uma escolha voluntária, racional e quase política. A cerveja do Zé delivery é mais barata e chega mais rápido na sua casa. Ainda tem a perspectiva da violência urbana. Então, junta-se um monte de coisa”, afirma. 

Para sobreviver em um cenário tão afetado pelos novos hábitos de consumo, é preciso se aproveitar daquilo que os botequins têm de sobra e o que o mercado tanto se esforça para replicar. Nesse contexto, Preá aposta que o caminho é único: a identidade do botequim é o grande capital.  

“Cada botequim é único. Não existe franquia de botequim. Não existe escala de reprodução porque aquilo ali é algo único com a sua subjetividade: o jeito do dono, do cliente, a música que toca até o conjunto de regras do lugar”, destacou.  

Entre inúmeros produtos que o botequim oferece e estão dispostos em prateleiras e estufas, a história e o pertencimento ainda são elementos impossíveis de serem comprados. Nas palavras de Preá: “Se amanhã abrir outro bar no lugar do Bar do Salomão (Belo Horizonte), ou seja, no mesmo território, vendendo as mesmas coisas, ele não é o mesmo bar. Tem a ver com pertencimento”. 

Bar Jodecama, registro feito em São Cristóvão–RJ. | Foto: Preá 

Pertencimento vira fidelização do cliente 

As mudanças nos hábitos de consumo são uma faca de dois gumes, ao mesmo tempo em que desafia os proprietários, elas podem oferecer oportunidades. Como exemplo, Preá identifica que o que antes era visto como "comidas simples" ganhou mais espaço no paladar das novas gerações de diferentes classes sociais.   

"Hoje, você sair para comer moela com polenta é mais aceitável do que há 20 anos. É uma possibilidade de ganho desses empreendedores ao entender que aquilo que era considerado comida de peão agora passou a ser também comida de playboy”, analisa. 

Além da identidade, história e pertencimento como grandes fatores de lucratividade, Preá ainda destaca que a sobrevivência dos botequins passa também por uma perspectiva de gestão dos proprietários. Ao invés de tentar se reinventar completamente para acompanhar tendências de mercado, a solução está em valorizar o que já existe.  

"A primeira coisa que temos que reforçar é falar para o dono do botequim: o que você construiu até hoje é moderno e é o seu capital. Não destrua isso. Fale para o seu sobrinho ou seu filho que vai assumir o bar, seus primos que vão ser sócios, manterem o patrimônio", explica.

Um segredo, segundo o pesquisador, é identificar os diferenciais únicos de cada estabelecimento, desde elementos estéticos do bar até a forma de atendimento, que costuma se destacar pela fidelização dos clientes. “O dono tem que olhar para dentro do próprio comércio e tentar identificar o que ele tem de diferente”, orienta. 

Preá indica que essa preservação consciente da identidade, memória coletiva e fidelização são as principais ferramentas competitivas dos botequins diante das transformações do mercado.  

“Esse pacto de preservação de uma memória coletiva de elementos é a chave de uma identidade e acho que isso é o que consegue preservar esse tipo de comércio frente a essa modificação de consumo. Essa apropriação de uma memória coletiva, seja do bairro, seja da rua, seja da cidade, é um capital que volta para o botequim”, conclui. 

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