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Legado à mesa: como restaurantes familiares se reinventam

A cultura da família em um restaurante vai além de sua história e cardápio, passa também por como organiza sua gestão. | Foto: Pexels

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Entenda como, além da troca de cargos, a sucessão em restaurantes preserva a história e os valores da complexa dinâmica das relações familiares e veja como essa passagem pode ajudar em seu estabelecimento

João Alves 27/10/2025 | 18:21

A cozinha costuma ser chamada de coração da casa, e com razão. É ali que os laços se estreitam, que as memórias ganham cheiro e sabor, que o afeto se traduz em ações e práticas. Em muitos negócios familiares, especialmente no setor de gastronomia, a cozinha também é o centro do negócio. É onde nascem histórias marcadas por tradição, esforço coletivo e identidade familiar. Mas, quando quem liderava esse espaço deixa de estar presente, surge um dos momentos mais sensíveis para essas empresas: o da sucessão. E dar continuidade a um legado nem sempre é fácil. 

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 90% das empresas no Brasil têm perfil familiar, sendo responsáveis por mais de 65% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Um número expressivo, sem dúvida. No entanto, quando se observa a longevidade desses negócios, os dados revelam um cenário mais desafiador. Segundo o Banco Mundial, apenas 30% das empresas familiares chegam à terceira geração, e apenas 15% conseguem sobreviver além dela. Nesse contexto, o velho ditado “Pai rico, filho nobre e neto pobre” ganha um sentido ainda mais realista na dinâmica empresarial brasileira. 

A dificuldade em manter negócios familiares ao longo das gerações vai muito além de questões financeiras ou estruturais. Para Lígia Yokomizo, professora de Gestão Financeira e especialista em Governança Corporativa, o processo de sucessão em empresas familiares é complexo porque envolve, além do patrimônio e da gestão, o universo emocional das relações familiares.  

“É preciso criar um ambiente onde o herdeiro possa desenvolver sua identidade como líder, sem ser engolido pela sombra do fundador”, explica. Segundo ela, esse desafio passa por lidar com a dificuldade de desapego dos fundadores, a insegurança dos herdeiros diante de um legado de sucesso e até a culpa por querer inovar, o que pode ser visto, dentro da família, como uma ameaça à tradição. 

Essas tensões emocionais muitas vezes se sobrepõem aos aspectos técnicos da gestão. “É muito importante aceitar a profissão que os herdeiros quiserem seguir, ao invés de impor o lugar que devem ocupar”, destaca Yokomizo. Para que a sucessão aconteça de forma saudável, é preciso preparar o herdeiro de forma gradual, respeitando seus tempos, competências e desejos. Sem isso, o negócio pode até sobreviver formalmente, mas perde sua força como projeto de vida familiar e acaba por reproduzir, na prática, o velho ditado de que o patrimônio dura apenas três gerações.

Sucessão com gestão afetiva  

Em muitos negócios familiares, tudo começa de forma despretensiosa: uma ideia cultivada dentro de casa, impulsionada pela vontade de quem inspira. Com o tempo, ganha corpo, público e propósito empresarial. Assim nasceu o Restaurante Dona Lucinha, hoje com unidades em Belo Horizonte–MG e São Paulo–SP, reconhecido como guardião da cultura alimentar mineira. 

Com 35 anos de história, o restaurante atravessou o seu processo de sucessão mantendo vivo o legado da Maria Lúcia Clementino Nunes, a Lucinha. Inspirada pelas suas experiências na zona rural de Serro–MG, ela transformou o que era motivo de vergonha, a comida simples da roça, em orgulho. “Na hora do recreio, os alunos da minha mãe escondiam bananas assadas, mandioca, batatas no mato. Elas tinham vergonha do alimento. Mas o que estava escondido, para a minhã mãe, era o nosso patrimônio alimentar”, lembra a filha, Márcia Clementino Nunes. 

Lucinha traduzia em seus pratos o afeto da cozinha do interior de Minas. | Foto: Miguel Aun 

Lucinha desenvolveu uma forma única de cozinhar, unindo duas tradições mineiras: a cozinha colonial dos tropeiros, seca, prática e resistente; e a da fazenda, rica em molhos e sabores intensos. A partir desse saber ancestral, criou um restaurante que preserva a identidade alimentar de Minas Gerais e valoriza a fartura, servida em dois grandes buffets. 

A filha Márcia, no entanto, seguiu outro caminho antes de assumir a gestão. Formada em história, atuou como professora por muitos anos e só se aproximou do restaurante ao repensar sua rotina. Aos poucos, afastou-se da sala de aula e passou a se dedicar ao negócio da família. 

Seu verdadeiro desafio veio em 2019, com a morte da mãe, seguida pela pandemia de COVID-19 no ano seguinte. “Reabrimos depois de dois dias com um silêncio de morte. Mas começaram a acontecer coisas mágicas. O carinho das pessoas, o reconhecimento do legado, foi o que nos deu força”, conta. A transição do tradicional buffet para o delivery e o serviço à la carte exigiu adaptações drásticas. Sem estrutura adequada e com uma equipe acostumada a cozinhar para cem pessoas, a casa precisou reaprender a servir dez. “Trocamos o pneu com o carro andando”, brincou.  

Hoje, o restaurante está consolidado em um novo formato, deixando para trás o serviço em grandes quantidades e adotando um cardápio à la carte com tira-gostos, pratos autorais, executivos e sobremesas. Nunes reflete sobre a mudança: “Não se rompe totalmente com o que já existe, nem se mergulha de uma vez no novo. Essa transformação é uma passagem, uma ponte entre tradição e inovação, sempre carregada dos saberes que já temos. Caminhar com um pé em cada lado é o equilíbrio necessário”. 

Na imagem, Lucinha e Márcia, mãe e filha, que tocaram juntas o restaurante da família. | Foto: Miguel Aun  

Para a especialista em empresas familiares Lígia Yokomizo, sucessões bem-sucedidas como essa não acontecem por acaso. “As empresas que sobrevivem à perda repentina de um líder são aquelas que iniciaram o processo de sucessão antes que ele se tornasse urgente”, afirma. Yokomizo ressalta três pilares essenciais para o sucesso da sucessão: uma governança sólida que integre patrimônio, empresa e família; um plano de sucessão bem definido, com responsabilidades, prazos e nomes claros; e a preparação gradual dos herdeiros, por meio de experiências práticas e envolvimento direto no negócio. 

No caso do Restaurante Dona Lucinha, embora não tenha seguido um roteiro formal, e talvez nem mesmo tenha ocorrido de forma totalmente consciente, a sucessão foi sendo construída na prática, ao longo dos anos, apoiada nesses pilares e sustentada pela afetividade, pelo vínculo entre mãe e filha e pelo valor simbólico do cardápio.  

Quando esse preparo não acontece, segundo Yokomizo, uma alternativa é recorrer a executivos de mercado, capazes de assumir as funções enquanto a família se reorganiza para a nova fase. 

Choques no processo da sucessão  

Outra situação comum entre empresas familiares é a dificuldade do fundador em “soltar o bastão” e permitir que a nova geração assuma o comando. Essa transição vai muito além da simples troca de liderança, trata-se de um delicado processo de redefinição de identidade, que exige equilíbrio entre preservar o legado construído ao longo dos anos e abrir espaço para uma geração mais nova. 

“O fundador muitas vezes confunde o CNPJ com seu próprio CPF, dificultando a transição. O legado está vivo quando evolui, e não quando permanece imóvel”Lígia Yokomizo

Para alinhar expectativas entre fundador e sucessor, Yokomizo defende a construção de um ambiente seguro para o diálogo aberto e frequente, que permita o enfrentamento das tensões naturais desse processo, que pode ocorrer interna e externamente. A governança familiar estruturada, por meio de conselhos de família, protocolos ou a presença de mentores externos, é essencial para formalizar regras, responsabilidades e solucionar conflitos que possam surgir.  

“O sucessor precisa ter voz e espaço para contribuir e inovar, enquanto o fundador deve ter um plano de saída claro e estruturado, que garanta a continuidade do negócio sem rupturas desnecessárias”, afirma Lígia Yokomizo.  
Lígia Yokomizo compartilha as principais dores das transições de negócios familiares. | Foto: Arquivo Pessoal. 

Este foi o caso do tradicional restaurante La Traviata, localizado na região da Savassi, em Belo Horizonte. A sucessão no restaurante da família Biagioni não aconteceu de forma planejada, mas foi precipitada por um momento delicado. Quando o patriarca Renato Savassi Biagioni adoeceu, Rafael e seus irmãos — até então sem experiência no ramo — se viram diante da necessidade de assumir a gestão de um negócio profundamente marcado pela presença e pelo estilo do pai. “Foi difícil conciliar o emocional com o racional. Entrar em um ambiente que lembrava nosso pai o tempo todo e, ao mesmo tempo, tentar separar a dor pessoal da responsabilidade profissional foi, sem dúvida, o maior desafio”, relembra Rafael. No início, a nova gestão precisou adotar um verdadeiro “choque de gestão” para que a equipe, composta por colaboradores que os viram crescer, reconhecesse a nova liderança. 

Da esquerda para a direita, os irmãos Gustavo Biagioni, Eduardo Biagioni e Rafael Biagioni, do restaurante La Traviata. | Foto: Divulgação 

 

Com o tempo, observação e escuta, os irmãos perceberam que não bastava implementar mudanças. Era necessário preservar vínculos e fortalecer a confiança entre gerações, tanto com os funcionários quanto com a clientela. Aos poucos, a criação de um ambiente seguro para o diálogo foi se consolidando, à medida que respeitavam o legado do pai e, ao mesmo tempo, promoviam inovações capazes de atrair novos públicos sem afastar os mais antigos. “Mantivemos pessoas-chave da equipe original, principalmente no atendimento. Alguns garçons estão conosco há mais de 30 anos, e muitos clientes só aceitam ser atendidos por eles”, conta.  

Prestes a completar uma década à frente da casa, Rafael destaca que o equilíbrio entre a autoridade dos novos gestores e o respeito à memória afetiva do restaurante foi essencial para evitar novos choques, garantir a continuidade do negócio e fortalecer os laços entre a família, os funcionários e os clientes. 

Sucessão assistida 

Mas o que acontece quando o sucessor natural cresce dentro do negócio e, desde cedo, entende que será ele o responsável por dar continuidade ao legado da família? Esse é o caso da Churrascaria Minuano e de Fabiano Ongaratto, atualmente à frente da gestão dos empreendimentos da família. Fundada há quase 50 anos pelo seu pai, Antônio Sérgio Ongaratto, e pela sua mãe, Lourdes Maria Ongaratto, a tradicional casa capixaba de churrasco, localizada em Vitória–ES, tem sua história entrelaçada à da família.  

Fabiano acompanhou de perto o crescimento da churrascaria e, ainda na infância, precisou lidar com a perda precoce do pai. Aos 14 anos, começou a trabalhar formalmente no restaurante e, pouco tempo depois, foi emancipado para assumir responsabilidades no negócio. O envolvimento com a churrascaria sempre foi algo muito natural, já que a rotina do restaurante fazia parte do seu cotidiano. Diante do falecimento precoce de seu pai, a gestão do negócio ficou temporariamente sob os cuidados de pessoas de confiança, como tios, cunhados e parentes que já haviam sido integrados à equipe pelo próprio fundador. 

A retomada da gestão pelos filhos, portanto, aconteceu de forma gradual e planejada, à medida que Fabiano e os irmãos alcançaram maturidade. “Mesmo com visões diferentes, sempre prevaleceu o orgulho da trajetória dos nossos pais e o desejo de preservar esse legado”, afirma Fabiano. Essa consciência foi construída desde pequeno, alimentada pela admiração e pelo senso de pertencimento ao negócio. “Nós queríamos crescer logo para começar a ajudar, para fazer parte daquilo”. 

Ao abordar a sucessão familiar no futuro, Fabiano destaca que os jovens de hoje priorizam o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, o que traz novos desafios para as empresas. Para ele, uma transição saudável exige mais do que planejamento, é preciso adaptar os valores da família. Enquanto gerações anteriores viam o esforço dos pais como exemplo, mesmo com ausências, os jovens de hoje tendem a valorizar mais a presença no convívio familiar. E para garantir uma boa sucessão, isso deve ser levado em conta. 

Reconhecer que cada processo de sucessão é único, moldado por contextos específicos, dinâmicas familiares e características individuais, é fundamental. No universo das empresas familiares, a sucessão vai além da simples troca de cargos. Ela exige apoio, diálogo e espaço para que os herdeiros possam se desenvolver. Só assim o negócio tem chances reais de prosperar e manter sua força após uma ou mais gerações.  

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