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O desafio da mudança de ponto: como não perder a essência?

Fachada do Birosca, um dos restaurantes mais famosos de Belo Horizonte deixará o ponto icônico no Santa Tereza.| Foto: Reprodução/Instagram

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Como restaurantes tradicionais e icônicos se reinventam para tentar encontrar outro ponto que não afaste os clientes e mantenha a identidade da unidade matriz

Yasmim Paulino 18/11/2025 | 17:37

Um dos elementos essenciais para um bar ou restaurante ter sucesso é o ponto. Para ser visto e bem frequentado, o dono ou dona precisa de um imóvel e um endereço que construa uma identidade marcante e ainda o ajude a encontrar seu público. Mas o que acontece quando o estabelecimento consegue reunir tudo isso e precisa se mudar?

Em Belo Horizonte, em um intervalo de poucas semanas, o Bolão, o Birosca e o Bar do Salomão, três bares e restaurantes icônicos da cidade, comunicaram que fechariam as portas e encarariam o desafio de reencontrar um novo espaço.

Os anúncios das mudanças mexeram com as emoções dos mineiros e não é para menos. Afinal, cada um dos estabelecimentos representa um valor cultural e gastronômico enorme para a cidade.  

Apesar de exporem diferentes razões para as mudanças, eles enfrentam agora desafios em comum: como mudar de ponto sem perder a essência que encantou clientes? E, ainda, como essas mudanças refletem as transformações do mercado da gastronomia? 

As mudanças no mercado gastronômico

O jornalista gastronômico Daniel Neto, conhecido como Nenel, que toca o projeto Baixa Gastronomia, frequenta assiduamente bares e restaurantes Brasil afora e lamenta o fechamento das casas.

Nenel aponta algumas mudanças no mercado gastronômico que tem impactado profundamente os bares e botequins, comércios tradicionais que têm, segundo ele, desaparecido com o tempo.

“Nem todo caso é igual. A especulação imobiliária vem vindo com muita força. Os bares, principalmente os que ficam em esquinas, estão sendo ameaçados de extinção. A gente vê exemplos também de casas que fecham porque o dono vai se aposentar ou está doente e não tem quem tocar. E tem também os fechamentos por má administração”, comenta.

Propostas irrecusáveis

Em uma esquina do bairro Serra ficava o Bar do Salomão, popularmente conhecido como “Bar do Galo”, apelido graças à paixão da família pelo time mineiro. Salomão Jorge Filho, herdeiro da terceira geração do negócio, anunciou que fecharia as portas com o espaço acumulando 72 anos de balcão.

O imóvel era próprio da família, mas Salomão Filho recebeu pelo ponto uma proposta considerada por ele irrecusável. “Chega uma hora que você tem que pensar no futuro. Eu, por exemplo, tenho quatro irmãs, então tive que pensar”, contou explicando sobre sua decisão.

Nenel, do Baixa Gastronomia, no cenário atleticano do Bar do Salomão. | Foto: Reprodução/Instagram

Para Nenel, a questão geográfica e os processos de gentrificação dos bairros também somam na conta. Exemplo disso é a visão que o jornalista tem em relação ao futuro dos negócios tradicionais: “Existe muito desrespeito, de chegar atropelando, sem o respeito devido a quem já estava ali há 30, 40 anos. Pode ser pessimista da minha parte, mas muitos estabelecimentos tradicionais estão com os dias contados”, lamenta.

Nesse sentido, Salomão corrobora com a fala de Nenel e se coloca como um exemplo. A própria vida vai engolindo esses bares de tradição, essas mercearias”, complementa.

Ainda sobre a proposta irrecusável que recebeu, ele diz: “O cara chegou e me ofereceu um dinheiro enorme pelo meu ponto e eu não posso perder uma dessas, senão eu vou morrer, o imóvel vai ficar ali e eu não vou ganhar metade do que ele me ofereceu. Eu nunca vou ganhar o que ele ia me dar. A tendência é essa, infelizmente” explica Salomão.

Os desafios territoriais impactam, principalmente, os estabelecimentos tradicionais, mas também refletem em novas gerações de empreendedores. Bruna Martins, uma das chefs mais reconhecidas da gastronomia mineira, desabafou em sua palestra no evento Mesa SP, promovida pela Prazeres da Mesa, sobre a decisão de se mudar do boêmio bairro Santa Tereza.

Seu primeiro restaurante, o Birosca, inaugurado em 2013, já foi visitado inclusive pelo chef Anthony Bourdain, em programa Parts Unknown e já entrou na lista dos 100 melhores restaurantes do Brasil, segundo ranking feito pela revista EXAME.

“Em BH, os restaurantes que estão deslocados da Zona Sul - dessas zonas de mais renome para o restaurante – penam. Estou cansada de penar.  Estou vendo um tanto de gente apostando e tomara que reaqueça a zona leste. Mas eu fiquei muito saturada de ficar penando por isso,” desabafou a chef sobre as dificuldades enfrentadas na capital mineira.

Bruna Martins, chef e empresária da gastronomia, é responsável pelos restaurantes Birosca, Florestal e Gata Gorda, na capital mineira. | Foto: Reprodução/Instagram

O casarão do Birosca fez parte da história da chef durante 13 anos e, apesar de relatar o sofrimento da escolha de se mudar, Bruna vinha enfrentando um cenário de instabilidade constante no fluxo de clientes.

“Principalmente no pós-pandemia, a gente sofreu muito. Eu me endividei muito, uma questão financeira muito pesada. O Birosca tinha clientes que chegavam às 10h40 ou 11h da noite. Eu tenho um restaurante na Savassi, que já é um ponto excelente, e não chegam tantos clientes mais como chegava lá no Birosca há uns anos. Então, o comportamento de consumo da cidade mudou muito”, explica.

Apesar da conexão do restaurante com o bairro, o carinho com a história do negócio e a importância do espaço para sua trajetória como chef, Martins destaca que a mudança foi um movimento em busca de mais visibilidade para o restaurante. “Eu chorava todos os dias porque eu sou apaixonada com a casa do Santo Tereza, mas foi uma escolha totalmente comercial”. 

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A relação entre território e o restaurante  

O território onde se levanta um negócio é tão importante para o restaurante quanto também é um desafio. No caso do Birosca, o bairro Santa Tereza desempenhou um papel fundamental na consolidação do negócio. A jornalista gastronômica Celina Aquino destaca a conexão e o impacto do restaurante.

“O Birosca ajudou a levar pessoas para o Santa Tereza e eu acho que ele marcou realmente uma fase da gastronomia do bairro. O restaurante só virou o que ele é por causa do lugar onde ele está, por causa daquele contexto do bairro, daquela casa, daquela esquina, então eu acho que tem ali uma conexão fortíssima com a identidade do lugar”, destaca.

Apesar do Bolão e o Birosca representarem diferentes gerações da gastronomia da capital mineira, ambos compartilham o mesmo bairro e, a partir disso, construíram uma identidade marcante por conta do que está no seu entorno. Dessa forma, a dupla reforça a profunda ligação dos bares e restaurantes com as cidades, os bairros e as pessoas.

Para Nenel, essas mudanças de endereço e fechamentos possuem um impacto muito maior do que a maioria das pessoas imagina, o que justifica a grande comoção. “Não é só um bar, não é só o físico, é também tudo que gera em torno, inclusive a autoestima de um bairro”, enfatiza.

Ainda passando pelo impacto econômico e cultural dos bares e restaurantes, Nenel pontua: “Pessoas viajam o mundo atrás disso, de conhecer esses lugares tão tradicionais e para além da tradição eles geram emprego. Eles movimentam o bairro, trazem segurança e são mais importantes do que muita gente acha”.

Como reabrir sem perder a essência?

Mais do que transportar mesas, cadeiras e equipamentos, o desafio da mudança está em preservar algo essencial: a alma do negócio. "Eu acho que a mudança é sempre um ponto delicado de um negócio e acredito que sempre está tudo muito conectado", diz Aquino.

"Pensando no início dos negócios, sempre tem algo que puxa e que está ligado com o lugar. E a partir daí, acredito que a cozinha também vai se desenvolver a partir de toda essa conexão", continua a jornalista.

Se entender o próprio bairro e região é natural para quem já está estabelecido, o desafio real da mudança é compreender o novo espaço e como se adaptar a ele sem perder a identidade conquistada. Na hora da mudança, além do físico, como transmitir continuidade e manter a essência do lugar?

Para entender como enfrentar essa transição sem perder a identidade construída ao longo de anos, é preciso primeiro compreender o que realmente define a essência de um lugar.

"Um erro comum é não estudar o lugar para onde vai”, pontua Nenel. Nesse mesmo caminho, Aquino continua: “Acho que mudar de endereço faz com que o negócio de alguma forma se transforme. Ele vai ter que se entender nesse outro lugar, vai ter que construir um novo público”.

“A alma está comigo, pode ter certeza disso. Aonde eu for, o povo vai. A alma é o dono do bar"Salomão

Apesar dos riscos e incertezas do desafio, Salomão reivindica o espírito empreendedor de boteco e diz que “A alma está comigo, pode ter certeza disso. Aonde eu for, o povo vai. A alma é o dono do bar", afirma.

Para Bruna Martins, a essência do Birosca se mantém para além do endereço e do charmoso casarão da esquina. A chef e empresária aposta na força da marca e na lealdade dos clientes construída ao longo dos anos.

"A gente tem um público muito fiel. Eu não sei o desafio que vou viver ainda, mas tenho um público que quer muito continuar frequentando a Birosca. E o Birosca, além do Santa Tereza, tem uma identidade muito forte que a gente vai levar como uma forma de sustentar o nosso conceito, a nossa marca, os nossos valores e é nisso que eu estou apostando", conta a chef.

Na trilha do otimismo, Aquino dá exemplos de restaurantes que fizeram uma transição e conseguiram manter a história viva. 

“O Tip Top é um bar de 1929 que já passou, se não me engano, por três mudanças de endereço e continua aí com quase 100 anos de história. É um ótimo exemplo de que é possível, sim, manter a identidade, mas com todos esses cuidados de saber como fazer essa mudança e como comunicar isso para as pessoas”, destaca a jornalista.

Apesar dos desafios, as histórias do Bolão, da Birosca e do Bar do Salomão são exemplos de que mudança de endereço não precisa significar o fim. A essência do restaurante não precisa estar totalmente entregue a um endereço e um espaço físico. A qualidade do serviço, a identidade do negócio e a relação genuína com o público torna possível fazer uma transição. 

Entre os inúmeros desafios durante esse percurso da mudança de endereço, o que parece sempre permanecer é a coragem dos donos de bares e restaurantes brasileiros e o desejo do público de que essas histórias continuem vivas.

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