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PAT: saiba tudo sobre taxas, novos prazos e riscos

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Em vez de dividir a conta, novas regras do PAT transferem custos para bares e restaurantes. Entidades apontam inconstitucionalidade no teto de taxas e preveem judicialização em massa.

José Eduardo Camargo 26/12/2025 | 11:38

A mais recente mudança no Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), promovida por decreto em novembro de 2025, reacendeu o debate sobre o futuro dos benefícios e perpetuou injustiças históricas do sistema. Em vez de corrigir distorções, a medida aprofunda o desvirtuamento dos princípios que nortearam a criação do PAT, transferindo ainda mais o ônus para bares e restaurantes. 

O PAT foi instituído em 1976 com um objetivo ambicioso: melhorar a nutrição dos trabalhadores brasileiros e, ao mesmo tempo, gerar impacto positivo nas empresas de alimentação fora do lar. Assim, o governo incentivava uma política pública de saúde e fortalecia um mercado essencial para a economia nacional. 

Ao longo dos anos, o PAT não apenas garantiu refeições para milhões de trabalhadores, mas também ajudou a transformar hábitos alimentares por um lado, e por outro, a construir um setor que hoje emprega mais de 5 milhões de brasileiros.

“A gente saiu de uma sociedade que almoçava em casa para uma sociedade que gasta um terço do que consome com alimentação fora do lar”, lembra Paulo Solmucci, presidente da Abrasel.

Esse movimento consolidou bares e restaurantes como parte fundamental da rotina urbana e como um dos maiores empregadores do país, criando um elo direto entre o benefício e o crescimento do setor de alimentação fora do lar. 

A gente saiu de uma sociedade que almoçava em casa para uma sociedade que gasta um terço do que consome com alimentação fora do larPaulo Solmucci.

O que começou como uma política equilibrada foi se desvirtuando. A lei previa que os custos seriam compartilhados entre governo, empresas e estabelecimentosCom o tempo, essa lógica se perdeu: o governo ainda arca com a desoneração do imposto, mas as grandes empresas que adquirem vales para seus empregados hoje não pagam nada (no passado, de modo justo, pagavam mais do que os estabelecimentos que aceitam os vouchers). Agora todos os custos ficam com os bares e restaurantes, na forma das taxas e tarifas. Essa assimetria transfere todo o ônus para o setor de alimentação fora do lar, perpetuando uma distorção que se agrava a cada nova mudança regulatória. 

O cenário se tornou ainda mais complexo com a criação do Auxílio Alimentação, em 2017. O Auxílio foi desenhado para ampliar o número de empresas que oferecem benefícios aos trabalhadores, especialmente aquelas que não podem utilizar deduções do Imposto de Renda, como empresas do Simples Nacional, entidades sem fins lucrativos e companhias que operam com prejuízo fiscal ou já utilizam todos os créditos disponíveis.

No entanto, ao longo do tempo, o Auxílio Alimentação também foi desvirtuado: perdeu o foco original de promover a alimentação saudável e passou a ser utilizado em uma gama cada vez maior de estabelecimentos, como supermercados e lojas de conveniência, sem o devido controle, possibilitando aquisição de itens não alimentares, como eletrodomésticos.  

História de sucesso em risco com nova medida 

A primeira grande mudança regulatória no PAT veio em novembro de 2021A legislação federal trouxe novas regras, que abriram as portas para que supermercados passassem a aceitar os vouchers. Também aumentou a concorrência entre operadoras, estabelecendo interoperabilidade (que permite que qualquer maquininha aceite qualquer bandeira) e portabilidade, dando ao trabalhador a opção de migrar seu benefício para outra empresa. E proibiu práticas como descontos para empresas contratantes, que distorciam o mercado e elevavam as taxas para restaurantes. 

novo decreto, de novembro de 2025, não corrige as distorções do programa e criou problemas novos. Ao fixar um teto de 3,6% (percentual sem justificativa técnica ou critério definidopara as taxas das operadoras e reduzir o prazo de repasse para 15 dias, a norma reforça injustiças do PAT e abre espaço para discussões na justiça 

principal reivindicação do setor de alimentação fora do lar é que a taxa média cobrada dos restaurantes seja igual à taxa média cobrada das empresas compradoras do benefício. A proposta defendida é de uma divisão justa em que as taxas atuais sejam divididas meio a meio, possibilitando que os estabelecimentos paguem a metade do que pagam hoje. Por exemplo, 1,8% para cada lado, em vez de 3,6% só para os restaurantes

Falando só do universo de bares e restaurantes, atualmente os negócios maiores do setor de alimentação fora do lar, como as redes, conseguem negociar taxas menores, enquanto os pequenos estabelecimentos ficam pressionados e acabam arcando com custos maiores. Isso gera uma dinâmica de mercado desfavorável para os pequenos negócios, que têm menos poder de negociação. Mas mesmo os grandes estão sob risco. “Se a taxa tabelada virar referência, empresas que hoje cobram menos podem subir seus preços para 3,6%. Isso não é positivo”, alerta Solmucci. A preocupação é que o teto, pensado para reduzir custos, acabe nivelando por cima e encarecendo todas as operações, independentemente do tamanho. 

O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, afirmou que o decreto assinado pelo presidente Lula “fortalece ainda mais o Programa de Alimentação do Trabalhador”. Segundo ele, as mudanças “criam condição para aumentar a concorrência, reduzir taxas e antecipar pagamentos, garantindo que o trabalhador seja beneficiado desse processoA regulamentação amplia a liberdade de escolha dos beneficiários e traz mais transparência”. 

Ele também reforçou que haverá fiscalização rigorosa: “Vamos descredenciar quem estiver descumprindo o PAT ou praticando irregularidades”. No entanto, o discurso até agora não saiu do papel. E, na prática, as mudanças vão contra o que sinalizou o governo, de proteger os pobres e cobrar os mais ricos. No caso do PAT, protege as grandes empresas e mantém os pequenos na boca dos tubarões. 

A Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT) reagiu com força às novas medidas sinalizou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal. “O decreto é inconstitucional. Não cabe ao Executivo legislar sobre matéria tributária e comercial”, declarou a entidade, que também alerta para riscos de desorganização no mercado. “Não existe empresa que consiga ajustar 170 mil contratos em 90 dias”, argumenta. 

O decreto é inconstitucional. Não cabe ao Executivo legislar sobre matéria tributária e comercial ABBTAs mudanças recentes tendem a ser judicializadas também pelas empresas de benefícios individualmente. Além disso, o setor público não foi incluído nas restrições de prazo e taxa, o que cria uma distorção: enquanto restaurantes precisam receber em até 15 dias, órgãos públicos continuam pagando com até 90 dias de atraso, sem sofrer sanções e protegidos pela lei. 

Outro ponto crítico é o risco de falência de pequenas empresas de benefícios, especialmente aquelas que atuam em cidades menores. A falta de medidas de proteção pode fazer com que, em caso de quebra, restaurantes fiquem sem receber valores devidos, agravando ainda mais a situação do setor. Ao contrário do senso comum de que são poucas empresas operando os vouchers, há centenas de pequenas companhias que atendem, principalmente, clientes do interior e governos municipais onde as grandes não chegam. As quatro maiores empresas de benefício concentram 80% deste mercado, mas as 20% menores representam mais de R$ 20 bilhões em faturamento. 

Há mais um aspecto importante a ser levado em consideração. Fontes do mercado avaliam que dos 100% que na origem do PAT eram usados em bares e restaurantes, apenas cerca de 30% dos recursos hoje sejam destinados à alimentação fora do lar. E a participação pode cair em breve para menos de 15% se não houver mecanismos de proteção. 

Apesar de avanços na legislação para proibir o chamado “rebate” (prática em que operadoras devolvem parte do valor contratado às empresas compradoras como incentivo comercial), ainda existem brechas para a concessão de prêmios e vantagens paralelas, o que mantém custos extras para os estabelecimentos. O governo não fechou completamente essa porta, permitindo que práticas que oneram o setor continuem. O Auxílio Alimentação, por exemplo, é terreno fértil para que este tipo de negociação prospere. 

O fluxo de caixa é um dos maiores problemas do dono de restaurante. Receber em 15 dias ajuda, mas a gente sabe que existem outras coisas por trás Marcelo Marani. 

Setor de bares e restaurantes reage 

Do lado dos restaurantes, as opiniões são cautelosas. Para Marcelo Marani, consultor e empresário, a redução das taxas é positiva, mas não resolve tudo. “O fluxo de caixa é um dos maiores problemas do dono de restaurante. Receber em 15 dias ajuda, mas a gente sabe que existem outras coisas por trás”, afirma. Ele lembra que prazos menores significam mais dinheiro circulando, mas também exigem ajustes complexos das operadoras. 

Matheus Lessa, especialista em gestão de restaurantes, questiona o impacto no preço final. “Dizer que isso vai baratear a refeição é populismo. A conta não fecha. No fim, pode até piorar, porque menos empresas vão querer fazer negócio”, avalia. Para ele, a medida pode trazer algum alívio, mas está longe de ser a solução para os problemas estruturais do setor. 

Paulo Solmucci vai além e critica a forma como as mudanças foram implantadas. “Tabelamento nunca é bom. Parece positivo no curto prazo, mas pode gerar distorções graves, como a tendência de elevação dos preços para quem hoje paga menos do que a taxa afixada.

O governo deveria ter dividido a conta com quem compra o benefício, como prevê a lei, e não jogado tudo para os restaurantes”, afirma. Segundo ele, a falta de transição adequada pode levar a judicialização e até à quebra de empresas menores. “Quem é associado da Abrasel já tinha uma taxa melhor do que essa de 3,6%. Mas ela poderia ser a metade, se as grandes empresas tivessem de dividir a conta, como previsto na lei original do PAT, completa Solmucci.  

Outro desafio são os prazos. “Reduzir o tempo de repasse significa exigir das empresas de benefícios um capital de giro adicional de R20 bilhões, com o exíguo prazo de 90 dias para o ajuste. Nem o governo conseguiria levantar este montante no prazo estipulado”, alerta Solmucci. Para ele, a falta de planejamento pode gerar um efeito cascata, com impactos em toda a cadeia. 

Entrada do arranjo aberto 

Outro conceito importante é o chamado arranjo aberto, consolidado pelo decreto. Ele separa as funções de emissão, credenciamento e liquidação das transações, permitindo maior concorrência e evitando práticas exclusivas que limitavam o mercado. Na prática, isso significa que uma empresa pode atuar apenas como credenciadora, sem precisar controlar todo o processo, o que tende a reduzir barreiras de entrada. 

A interoperabilidade, prevista na lei de 2021 e reforçada pela portaria de 2025, significa que qualquer maquininha poderá aceitar qualquer bandeira de vale-refeição ou alimentação. Antes, cada operadora exigia equipamentos específicos, o que limitava a aceitação e aumentava custos para os estabelecimentos. Com a mudança, o governo diz esperar mais praticidade para restaurantes e consumidores, além de maior concorrência entre as empresas emissoras. No entanto, o próprio governo reconhece que a adaptação tecnológica será complexa. 

Enquanto isso, restaurantes tentam se adaptar. Muitos veem na interoperabilidade uma vantagem prática: menos burocracia e mais opções para o cliente. “É melhor receber qualquer forma de pagamento do que perder venda”, diz Matheus Lessa. Para ele, a tecnologia pode ser aliada, desde que não gere custos adicionais. 

É melhor receber qualquer forma de pagamento do que perder vendaMatheus Lessa.Já a portabilidade, que permitiria ao trabalhador transferir seu saldo para outra operadora, não deve sair do papel tão cedo. Embora prevista no decreto de 2021, há dificuldades técnicas para garantir segurança e integração entre sistemas, o que torna a medida inviável no curto prazo. Para a Abrasel, esse ponto é crítico: “A interoperabilidade é positiva, mas a portabilidade pode gerar distorções e custos extras para os restaurantes”, afirma Solmucci.

Um dos riscos é o chamado cashback (devolução de valores), que acabam sendo custeados pelos estabelecimentos. “Se o trabalhador muda de empresa em troca de vantagens, alguém deve pagar essa conta. E quem tem bancado isso sempre somos nós, bares e restaurantestendo de repassar para o consumidor, que acaba não obtendo o ilusório benefício da troca”, alerta Solmucci. 

O debate segue quente. De um lado, promessas do governo de economia para trabalhadores e mais competitividade, mas sem a coragem ou a disposição para corrigir injustiças. Do outro, riscos de judicialização e desarranjo no setor. “A intenção foi boa, mas o método foi ruim, abrindo espaço para judicialização, ressuscitando o tabelamento de preços e evitando mexer no que realmente causa distorções”, resume Solmucci. A frase sintetiza o sentimento de incerteza que domina o mercado. 

Além das questões econômicas, os impactos jurídicos tendem a ser muito relevantes, colocando em risco os prazos estabelecidos e jogando o PAT em uma zona de forte instabilidade e impasse. Caso isso ocorra, todo o mercado pode voltar a ser desestruturado. Esse cenário preocupa tanto operadoras quanto restaurantes. 

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