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Como tornar a identidade um ativo estratégico no cardápio

Utilizar a ancestralidade dentro da cozinha pode ajudar a gerar conexão com o cliente. | Foto: Mage Monteiro

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Veja como a identidade pode ser um ativo estratégico no cardápio de bares e restaurantes (sem usar como um mero marketing leviano) e gerar conexão com seus clientes por meio de seu posicionamento

Danilo Viegas 24/11/2025 | 17:48

Quando em entrevista ao programa Conversas com Bial o conceituado jornalista Arnaldo Lorençato disse: “eu não acredito em cozinha afetiva em um restaurante profissional”, o mundo gastronômico ficou em polvorosa. 

Ao lado da chef Renata Vanzetto, também entrevistada por Pedro Bial, Lorençato argumentou que um ambiente de lucro não pode vender afeto genuíno, ainda que seja sim um local de acolhimento e boas memórias. Mais que causar uma falsa polêmica, Lorençato questionou a viabilidade de se adicionar o afeto como um diferencial para aumentar o preço de um produto. 

Em ciclos que se apresentam como tendências potencialmente frutíferas, mas que acabam se saturando, a “cozinha afetiva” talvez tenha sido vítima do mau uso da palavra. Mas como a identidade legítima de um restaurante, enquanto negócio que tem a missão de ser financeiramente sustentável, pode ser um ativo estratégico na gestão? A resposta passa, claro, pela autenticidade. 

A fuga dos clichês 

Para a jornalista e cozinheira Ana Sandim, da plataforma Ingrediente da Vez, os termos "cozinha afetiva" e "cozinha de memória" foram, de fato, banalizados. “A cozinha afetiva virou um selo de autenticidade, quando muitas vezes não passa de estética emocional e narrativa vazia (...) talvez devêssemos falar mais sobre nostalgia e memória, e menos sobre afeto genérico”, diz. 

“Mais do que storytelling, é preciso ter história. E história, a gente sabe: não se inventa”Ana Sandim

Para a jornalista, hoje qualquer restaurante com uma poltrona de vime, uma frase em giz na parede e uma história genérica de “receita da avó” se autointitula guardiã da tal cozinha afetiva, mesmo que sirva pratos sem nenhuma conexão real com território, memória ou técnica tradicional. 

O desafio, para quem quer comunicar raízes e identidade sem cair nessa armadilha, é justamente resistir à tentação do enfeite e da caricatura. “A coerência é a chave. Não adianta contar uma bela história se o prato não carrega esse enredo no sabor, no ingrediente, no modo de fazer”, diz. 

A memória, segundo Sandim, não está só no discurso. Ela precisa estar no processo, na escolha do fornecedor, no ritmo da cozinha, no respeito pela origem. Ela tem que estar em tudo, ser o todo.  

“Mais do que storytelling, é preciso ter história. E história, a gente sabe: não se inventa. Mostrar o que é real, mesmo que simples, é infinitamente mais poderoso do que tentar forçar a narrativa da moda. A cozinha afetiva não está no que se diz sobre ela, mas no que ela faz sentir. E isso, ninguém finge”, finaliza. 

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Como nasce uma ideia genuína? 

Em Belo Horizonte, o recém inaugurado Tom se denomina “cozinha de herança”. O nome não é por acaso e com o perdão do trocadilho, dá o tom de todo o restaurante, desde a decoração, que relembra a arquitetura Art déco tão característica de BH até o cardápio, que mescla a técnica contemporânea às memórias e tradições alimentares de matriz africana, indígena, portuguesa e rural. No fim, o que o Tom propõe é uma gastronomia autoral, sofisticada e enraizada na cultura brasileira. A cozinha é comandada pela chef Ana Clara Valadares, que ganhou experiência em outras casas da capital mineira. 

“É fato que em uma cozinha profissional não existe afetividade, porque é trabalho. Não dá para romantizar demais. Às vezes você trabalha mal-humorado e o prato sai gostoso do mesmo jeito. Todo cozinheiro brinca que amor e ódio são os dois melhores temperos”, disse a chef ao podcast O Café e a Conta, da B&R. 

O conceito de “cozinha de herança”, segundo Ana e Túlio D’Angelo, também sócio do empreendimento, surgiu nos estudos sobre a história da alimentação brasileira.  Com vivência desde a infância nas festas de Congado e no cotidiano rural do interior de Minas, Ana conta que o repertório do Tom é construído sobre técnicas ancestrais como defumação, cozimento em brasa, conservação na banha e caldos de base portuguesa.  

“O desafio está em valorizar uma técnica de pinga e frita, uma técnica de fermentação de qualquer outra coisa que não seja de fato europeia (...) Aí entram os estudos: é mais fácil acessar uma técnica francesa do que uma técnica de higienização indígena, que está só no saber oral”, conta. 

No Tom, o termo cozinha de herança é cunhado para remeter as raízes familiares que perpassam a culinária oferecida aos clientes no restaurante.  | Foto: Mage Monteiro

Identidade 

Já em Manaus, a chef Selma Reis comanda o tradicionalíssimo restaurante Zefinha, que se autointitula uma cozinha genuinamente amazonense. O nome, aliás, é em homenagem à mãe de Selma, chamada carinhosamente assim por seu marido. No cardápio, as raízes caboclas e a vivência de uma cozinha feita para grandes famílias ribeirinhas.  

Nascida às margens do rio Aripuanã, no município de Novo Aripuanã (AM), Selma recebeu a equipe de reportagem da B&R, que estava na cidade para a cobertura da FIGA, em seu novo restaurante, o Cadeira de Macarrão, (dessa vez em homenagem ao pai, que ficava na porta de casa sentado em uma dessas cadeiras tão típicas Brasil afora). O cardápio? Um prato tipicamente amazonense: carne de tracajá, uma tartaruga de água doce - com direito a sarapatel, guisado e farofa servida diretamente no casco.  

A iguaria, impactante ou até mesmo exótica para os paladares sudestinos (vale lembrar que se trata de tartarugas de manejo, ou seja: devidamente legalizadas e controladas pelos órgãos responsáveis) é, na verdade, considerada de certo modo afetivo, no sentido da memória, para boa parte dos manauaras e ajuda a contar a história da região.

“É um prato feito por famílias quando querem receber grandes convidados, motivo de festa para todos. Esse costume está se perdendo, então mais que encarar com um viés exótico, existe também o viés da resistência”, diz Selma. 

Resistência, segundo ela, por ser algo que remonta à memória e ao afeto e que nos leva também à missão básica de um restaurante: mais que alimentar, restaurar. É nessa toada, segundo Selma, que mora a sua proposta de aconchego. 

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