Unir práticas de sustentabilidade ao cotidiano da gestão de um restaurante soa como algo difícil e distante para muitos donos de bares e restaurantes. Mas, na Ilha do Combu, a 15 minutos de barco de Belém, no Pará, o restaurante familiar de comida tradicional amazônica Saldosa Maloca tem se tornado um farol de possibilidades quando o assunto é sobreviver com a ajuda de práticas sustentáveis.
Inaugurado na década de 1980, a história do estabelecimento começa com um casal de moradores da ilha, que decidiu abrir uma espécie de quiosque para atender turistas que visitavam um clube na região. Com tempo e investimento, o negócio cresceu e se enraizou como um dos principais destinos gastronômicos da região.
A inspiração para o nome da casa veio da música Saudosa Maloca, de 1957, graças à grande admiração da família pelo grupo musical Demônios da Garoa, ícones das rodas de samba paulistanas. Nesse caso, o Saldosa adotou uma grafia diferente e considerada gramaticalmente errada, mas que atraía a curiosidade dos clientes que passavam e liam a placa.
Atualmente, quem toca o negócio são Prazeres e Kelli Quaresma, filhas do casal José Anjos dos Santos e Odete Pena Quaresma dos Santos, fundadores do restaurante, que ainda conta com o auxílio da gerente Débora Santos.
A família vive no território há gerações e possui um vínculo profundo com a ilha. "Nós sempre fomos moradores da ilha. Meu pai veio viver aqui com 14 anos, mas a família da minha mãe já vivia aqui. Meu avô, minha mãe e eu nascemos aqui", conta Prazeres.
O pertencimento traz sensibilidade em aplicar práticas sustentáveis, mas para Prazeres, o que realmente transformou a sustentabilidade em um modelo de gestão do negócio foi a necessidade de sobrevivência.
O que faz um restaurante ser sustentável?
Em 2022, o Saldosa Maloca recebeu o título de Eco Restaurante pelo Sebrae devido às inúmeras práticas sustentáveis aplicadas no cotidiano da operação. "Tudo que fiz aqui foi porque eu tinha uma necessidade. A gente não tinha coleta de resíduo, era um problema para mim, mas eu não me acomodei", conta Prazeres.
A herdeira e sócia-proprietária do negócio também atua como chef do restaurante e aponta um dos principais desafios: "produzir o resíduo na quinta-feira e só levar para a cidade na segunda trazia um mau cheiro absurdo, era horrível."
Ao invés de descartar os resíduos de qualquer maneira, Prazeres investigou opções. Por meio da Abrasel, a equipe do Saldosa conheceu profissionais que trabalham com biodigestores, equipamentos que realizam o tratamento de resíduos orgânicos.
O restaurante adquiriu as máquinas, que tratam todo o resíduo da cozinha, transformando-os em biofertilizante e gás metano, queimado parcialmente na cozinha. "Ele não nos atende totalmente, mas o mais importante é que você não está deixando esse metano ir para o ambiente", explica a chef.
Prazeres conta ainda que reaproveita os óleos da cozinha na produção de sabonetes e detergentes. "A gente faz um detergente e um sabonete usado para lavar a louça do Saldosa. Esse sabonete também fica nos lavabos e nós aromatizamos com essências locais como o patchouli e o capim santo", detalha.
Em conjunto com a ação dos biodigestores, o restaurante ainda utiliza a compostagem, canudos de papel e realiza a separação dos resíduos recicláveis. Essas práticas não só otimizaram a gestão da operação, solucionando diferentes necessidades do negócio, como ainda geraram reconhecimento internacional. O Saldosa Maloca possui o selo de sustentabilidade emitido pela Green Destinations, organização internacional que reconhece destinos gastronômicos alinhados a práticas sustentáveis em todo o mundo.
[...] O plástico não pode ser o vilão, tem que ser o nosso auxiliarPrazeres Quaresma
Prazeres ainda argumenta sobre o uso do plástico da cozinha, que tem sido cada vez mais repensado dentro do mercado: "em uma cozinha, tudo é feito em porções. E o plástico não pode ser o vilão, tem que ser o nosso auxiliar. Mas para ele não ser o vilão, você tem que dar uma destinação correta para ele", demonstrando que tudo deve ser analisado com cautela e estratégia.
A gerente e parceira do negócio, Débora Santos, destacou alguns dos principais pontos positivos das práticas sustentáveis, considerando a operação, a marca e a construção de um público de clientes.
"Além de promover a conservação da floresta e a valorização da cultura local, as práticas sustentáveis auxiliam na otimização da operação do restaurante, reduzindo custos e melhorando a eficiência. Além disso, valorizam a marca, trazendo reconhecimento como um estabelecimento comprometido com a sustentabilidade, e atraem clientes que buscam experiências autênticas", afirma Santos
Essa perspectiva sobre o impacto das práticas sustentáveis é compartilhada por especialistas do setor. Luiza Campos, líder de ASG na Abrasel, destaca a importância do mercado de alimentação fora do lar ter como referência uma gestão sustentável como a do Saldosa.
"O Saldosa Maloca é um restaurante que consegue colocar na prática conceitos que estão sendo amplamente discutidos em outras indústrias do mundo inteiro e trazer uma tradução desses conceitos mostrando que não só é possível, mas como já está acontecendo", explica.
As ações de gestão dos resíduos do restaurante otimizam o cotidiano da operação e reduzem os impactos do negócio no ecossistema da ilha, mas sobretudo contribuem para que um movimento em cadeia se fortaleça.
"Quando a Prazeres conta a história dela, ela fala do entendimento de que o restaurante faz parte de um ecossistema, de uma cadeia de produção, então essa cadeia toda precisa estar fortalecida", continua.
O sustentável no coletivo
Na direção de incentivar o turismo sustentável real, moradores da Ilha do Combú desenvolveram um projeto de estruturação turística que promove o ecoturismo e fortalece o empreendedorismo local, a Rota do Combú.
Quando buscamos esse turismo de experiência, acreditamos que isso vai trazer um turismo mais duradouro para a ilhaPrazeres Quaresma
Por enquanto, o projeto é composto por 14 empreendimentos que oferecem diversas experiências na ilha para quem deseja mergulhar na Amazônia. O Saldosa Maloca está entre os destinos gastronômicos.
"Não queremos apenas o turista que vem aqui para comer um peixe, tomar uma cerveja, se embriagar, ouvir uma música alta e ir embora. Queremos esse turista que quer vir e entender o que é esse ecossistema tão complexo que é a Amazônia. Pelo menos, tentar ficar mais próximo de uma cultura ainda tão desconhecida que é a nossa", continuou a chef.
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Sustentabilidade amazônica
A Rota do Combú oferece experiências autênticas na Amazônia paraense, que incluem vivências culturais de quem transmite saberes passados de geração em geração. Uma das operadoras que realizam esse trajeto é a Vida Caboca, projeto com o qual Mário Carvalho colabora.
Carvalho é professor, assessor, chocolateiro, pesquisador e ainda trabalha com roteiros turísticos que valorizam diversos empreendimentos ribeirinhos, unindo os saberes rurais ao turismo.
"O diferencial do que estamos desenvolvendo no território está na sustentabilidade social e econômica, mas procuramos abordar todas as dimensões: cultural, do conhecimento, geográfica e institucional", destaca sobre o roteiro ecoturístico.
Segundo ele, a ideia de sustentabilidade não pode ficar restrita à superfície e existe uma pergunta importante a ser feita sobre: "como essas experiências se relacionam com a cultura ancestral ribeirinha? O quanto valorizam essa cultura?".
Na experiência do pesquisador, a ideia de sustentabilidade precisa ser aplicada respeitando as características de cada território e das pessoas que já estão inseridas ali há centenas de anos. "Essa é uma grande distinção para o setor de alimentação: não usar a cultura amazônica de forma colonialista", explica.
Para ele, não basta comprar algum produto da agricultura familiar ou desenvolver práticas que se dizem sustentáveis e não respeitam o conhecimento ancestral, as pessoas e aquele lugar. "Na hora de usar o jambu, precisamos aplicá-lo de forma que valorize o patrimônio cultural e material daquela região, a tradição alimentar", orienta.
Muito além dos limites do Norte do país, a gestão do Saldosa Maloca e a mobilização dos empreendedores ribeirinhos por um ecoturismo provam como é possível alinhar o crescimento de bares e restaurantes às práticas sustentáveis.
Mesmo sem grandes investimentos, a perspectiva da sustentabilidade amazônica focada no coletivo inspira possibilidades mais acessíveis que promovam mudanças reais. Luiza Campos destaca que:
"O importante é que os gestores e proprietários se conscientizem de que o setor precisa fazer esse movimento não só em prol da saúde ambiental do planeta, mas também da saúde financeira do negócio".
Algo que é característico do mercado de bares e restaurantes é ser uma ponte de comunicação com a sociedade e isso é uma janela de oportunidade de conscientização. "A partir do momento que um estabelecimento consegue implementar ações, processos, uma gestão mais sustentável, ele consegue também gerar essa conscientização na sociedade", completa Campos.
Em um cenário de insegurança sobre o futuro do planeta e uma COP 30 sediada no Norte do Brasil, o mercado de alimentação fora do lar tem um papel importante na direção de reduzir os impactos negativos na natureza. Nesse caso, a gestão do Saldosa pode funcionar como um farol para quem busca inspiração no cotidiano da gestão.
