O trabalho intermitente tem sido uma modalidade de contratação fortemente difundida em meio ao setor de alimentação fora do lar. Aprovado através da Reforma Trabalhista de 2017, por meio da Lei nº 13.467/2017, o número de empresas e trabalhadores adeptos ao contrato de trabalho esporádico tem aumentado no país.
Segundo dados levantados por meio da RAIS e publicados pela Abrasel, os contratos intermitentes cresceram quase 60 vezes entre 2017 (ano que foi regulamentado) e 2023, passando de 7,3 mil para 416 mil vínculos. Quando recortado para o setor de alimentação fora do lar (food service), o crescimento sai de apenas 315 contratos para 15,8 mil no mesmo intervalo de tempo.
Bares e restaurantes quadruplicaram o número de contratos de trabalho intermitente entre 2017 e 2023AbraselDados os números, a taxa média de crescimento dos contratos intermitentes no setor de bares e restaurantes foi de 92,1% no período e o setor já responde por cerca de 3,8% de todos os contratos intermitentes. A Associação pontua que “dentre os diferentes tipos de estabelecimentos, os bares, em especial, ampliaram sua participação, passando de 71 contratos intermitentes em 2017 para 3,8 mil em 2023 e alcançando 24,2% dos vínculos intermitentes no setor, uma participação bastante superior à participação geral dos bares nos empregos formais do setor que é de 4,1%”.
A contratação de modo esporádico ou intermitente, é uma solução viável e que favorece a retirada de trabalhadores e empresas da informalidade. Conversamos com Luiz Henrique Amaral, advogado especialista no tema e com Franklin Abreu, chef e proprietário da Távola Costelaria, em Viçosa (MG), uma operação que funciona 100% no modelo de contrato intermitente, para entender mais sobre o formato.
O que é o trabalho intermitente?
Formalizado por meio da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), após a Reforma Trabalhista de 2017, o modelo de trabalho intermitente, também chamado de esporádico, passou a ser regulamentado no país.
Basicamente, neste modelo o colaborador presta serviços conforme a demanda do negócio o qual foi contratado. Ou seja, ele é convocado para a comparecer ao trabalho e, assim, recebe referente ao trabalho prestado.
A CLT determina a legalidade do formato e impõe regras, o que torna o trabalho intermitente um formato que garante direitos e deveres para colaboradores e empresários.
Veja a seguir o que diz o § 3º do artigo 443 da CLT:
“Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.”
Amaral, explica que o trabalho intermitente possui características próprias em seu formato de contratação e no modo como ele é regido. Por isso, esclarece que é um modelo de prestação de serviço com subordinação, mas não contínua, ou seja, “ocorre com alternância de períodos de trabalho e inatividade determinados em horas, dias ou meses”.
Histórico
Um dos registros do setor de alimentação fora do lar, além de ser a porta de entrada para muitas pessoas para o mercado de trabalho, o setor é marcado também pela informalidade.
Conforme explica Amaral, o “trabalho intermitente nasceu de uma necessidade urgente: a força de trabalho brasileira vivia na informalidade, fazendo ‘bicos’ sem carteira assinada nem garantias”, resume o advogado sobre a motivação para a criação da Lei 13.467/2017, que teve o propósito de "adequar a legislação às novas relações de trabalho".
Como o especialista explica, a CLT de 1943 não possuía convergências com os formatos e complexidades atuais trazidos pela economia digital, aplicativos e trabalho sob demanda. Devido a isso, houve a formulação do formato com base em exemplos de outros países.
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"O Brasil seguiu exemplos internacionais como o "'Contrato de Zero Hora' da Inglaterra e o 'Contrato Fijo-discontinuo' da Espanha, criando uma solução brasileira para um problema global” - Luiz Henrique Amaral. |
Quais os benefícios do trabalho esporádico para bares e restaurantes?
O chef mineiro Franklin Abreu, apresenta outro lado da realidade enfrentada pelo setor, a falta de mão de obra. “Como muitos empreendedores, especialmente no setor de alimentação, enfrentava um problema crônico com a falta de pessoal para trabalhar, principalmente nos finais de semana e durante a noite. Era uma dificuldade recorrente. A rotatividade de funcionários era alta; as pessoas não permaneciam por muito tempo e estavam sempre em busca de outro emprego”, conta.
Além disso, Abreu relata que esse era um dos problemas, pois também enfrentava desafios como o “excesso de atestados médicos e pedidos de folga inusitados para os mais variados motivos. Além de outros problemas graves, como a falta de pontualidade e o comportamento na hora do fechamento. Atrasos eram constantes”.
Ele detalha que a implementação do modelo trouxe “um impacto muito positivo”. Além de conseguir aumentar o número de colaboradores, que antes era de nove formais e alguns informais, passou a ter 28 com carteira assinada, que se revezam conforme a disponibilidade.
Entre os principais problemas solucionados, como informa o empresário, são:
- Atrasos: "acabaram completamente. Ninguém mais chega atrasado. Pelo contrário, tive que chamar a atenção para que não chegassem cedo demais, pois agora recebem por hora";
- Faltas e atestados: "o problema de faltar sem aviso ou 'sumir' foi eliminado. Os atestados médicos também deixaram de existir. Embora o atestado garanta o pagamento do dia, eles não sentem mais a necessidade de apresentá-los, pois podem simplesmente optar por não trabalhar em um determinado dia";
- Comprometimento: "a questão de querer ir embora mais cedo foi invertida. Agora, todos querem ficar o máximo de tempo possível para acumular mais horas, especialmente no período noturno, que tem um valor maior";
- Ambiente de trabalho: "o ambiente na empresa melhorou, e a satisfação dos colaboradores em trabalhar também aumentou".
Amaral destaca que os benefícios são diversos e que agora “o setor gastronômico finalmente tem uma ferramenta legal adequada às suas características naturais. Catering, restaurantes sazonais, estabelecimentos turísticos e bares especializados podem operar com segurança jurídica. O intermitente não apenas moderniza as relações trabalhistas - ele liberta um setor inteiro das amarras de um modelo inadequado, criando oportunidades reais de crescimento e formalização sem precarizar direitos”.
O setor gastronômico finalmente tem uma ferramenta legal adequada às suas características naturais.Luiz Henrique AmaralAbreu reforça que o modelo não só favoreceu a dinâmica econômica do estabelecimento, mas que possibilitou contratar pessoas diversas e que encaixam a rotina do negócio às suas escalas de trabalho em outros empresas, como forma de renda extra.
Guia prático do contrato intermitente
Para que se tire bom aproveito dos benefícios trazidos pelo contrato de trabalho intermitente, é necessário que donos de bares e restaurantes se resguardem e que busquem a segurança nas ações.
Conforme detalha Amaral “essas práticas garantem que o estabelecimento utilize o modelo respeitando os limites legais, evitando descaracterização e aproveitando a flexibilidade para adequar a força de trabalho conforme a demanda”.
Outro ponto destacado por ele é que jamais se deve remunerar períodos de inatividade, pois “se houver remuneração por tempo à disposição no período de inatividade, restará descaracterizado o contrato de trabalho intermitente”.
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O que deve ter no contrato?
A formatação do contrato de trabalho intermitente é um fator de dúvidas entre os empresários de bares e restaurantes. Isto é, o que deve ter no contrato do prestador de serviços esporádicos?
Como já visto, apesar de ser um modelo de trabalho que é feito sem vínculo contínuo, há ritos e detalhes importantes a serem celebrados para que tudo ocorra na formalidade.
Inicialmente, o contrato de trabalho intermitente deve ser obrigatoriamente celebrado por escrito e conter alguns pontos importantes a serem destacados, tais como:
- Valor da hora de trabalho;
- Identificação, assinatura e domicílio ou sede das partes;
- Local e prazo para pagamento da remuneração.
O contrato deve ser registrado na CTPS do empregado, mesmo que previsto acordo coletivo de trabalho ou convenção coletiva. O empregador tem o prazo de 5 (cinco) dias úteis para anotar na CTPS, e deve possuir as informações de data de admissão, remuneração e condições especiais, se houver.
Além disso, é importante que o empresário fique atento que o valor da hora de trabalho não pode ser inferior ao valor horário do salário-mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não.
Gestão administrativa
Pagamento deve ser feito ao final de cada período de trabalho. Ou seja, ao finalizar de cada prestação de serviço, o empresário deverá pagar imediatamente ao colaborador:
- Remuneração;
- Férias proporcionais com acréscimo de um terço;
- Décimo terceiro salário proporcional;
- Repouso semanal remunerado;
- Adicionais legais.
O recibo de pagamento deve conter a discriminação dos valores pagos relativos a cada uma das parcelas. E o empresário deve fornecer ao empregado comprovante do recolhimento da contribuição previdenciária e depósito do FGTS.
Controle de multas
Para que não haja desorganização, a regulamentação diz que se aceita a oferta para comparecimento ao trabalho, a parte que descumprir sem justo motivo pagará multa de 50% da remuneração que seria devida no prazo de 30 dias, permitida a compensação em igual prazo.
Gestão de férias
Ao que diz respeito ao período anual de férias, fica garantido que a cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir um mês de férias nos doze meses subsequentes, período no qual não poderá ser convocado pelo mesmo empregador.
Como funciona a convocação e recusa dos trabalhadores?
Com a dinâmica de trabalho sendo realizada por demanda, o contratante deve organizar-se para que ele possa convocar os seus colaboradores. O regramento determina que o empresário deve realizar o chamamento com pelo menos três dias corridos de antecedência para a data de atuação.
Amaral reforça que a convocação não é garantia que o colaborador comparecerá ao trabalho, pois, como explica “a recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente. O trabalhador pode recusar convocações sem perder o vínculo empregatício”.
Neste contexto, o colaborador tem até um dia útil para responder às convocações e seu vínculo não garante exclusividade. De modo que “durante o período de inatividade, o trabalhador pode prestar serviços a outros contratantes, garantindo pluralidade de fontes de renda”, destaca o advogado.
Abreu conta que com a mudança do formato na sua empresa e devido às especificidades do formato, criou um modelo próprio de gestão de colaboradores. “Com a mudança, contratei mais pessoas do que precisava para criar uma certa ‘demanda’ de trabalho e evitar o risco de muitos desfalques nas mesmas datas”, explica ao detalhar o formato utilizado.
- Criei um grupo no WhatsApp com todos os colaboradores, onde apenas eu posso enviar mensagens;
- Todo domingo à tarde, público uma enquete com a pergunta: "Quais dias você quer trabalhar esta semana?";
- As opções são os dias da semana, de segunda a domingo. Cada colaborador clica nos dias de sua preferência;
- Com base nos votos, eu monto a escala de trabalho, priorizando as escolhas deles.
Para sanar o principal problema enfrentado, que é a falta de interesse de trabalhar aos finais de semana, ele conta que criou a seguinte regra “a preferência para trabalhar nos dias de semana (que têm movimento mais fraco) é de quem também se disponibiliza para os finais de semana e feriados. Quem não se candidata para os dias de maior movimento fica em segundo plano na escala dos dias úteis”, estratégia que funcionou e favoreceu o aumento da procura pelo trabalho aos fins de semana.
Por que adotar o contrato de trabalho intermitente?
Atualmente, Abreu possui 100% da sua operação com a equipe no modelo de contrato de trabalho intermitente. O que para ele esse foi o modelo que resolveu a os principais desafios enfrentados em sua gestão.
Como detalha o empresário, “antes de tomar qualquer decisão, pesquisei a fundo com meu contador e, sentindo-me seguro, migrei 100% da empresa para essa nova modalidade de trabalho”.
Um dos pontos que o fez optar pelo formato é a possibilidade de estar dentro da legalidade e ainda oferecer, de forma proporcional, os direitos que o trabalhador deve receber.
“Nesse modelo, o colaborador tem todos os mesmos direitos e deveres de um contratado mensalista, porém, de forma proporcional. Férias e décimo terceiro são calculados com base nas horas trabalhadas. O terço de férias, segundo entendi, é pago integralmente, e o funcionário goza de 30 dias de descanso, mas a remuneração desse período é proporcional à sua média de trabalho”, conta o empresário.
Além dos benefícios ao trabalhador, o dono de bar e restaurante também sente vantagens em seu caixa e na sua operação. Amaral evidencia que “este sistema cria um modelo onde o trabalhador tem segurança financeira imediata e transparente, enquanto o estabelecimento tem custos proporcionais e previsíveis, beneficiando o planejamento financeiro de ambas as partes através da eliminação de incertezas e acúmulos típicos dos contratos tradicionais”.