Fora do lar, dentro do negócio
Última edição

As estratégias da entrada da Keeta no Brasil

A empresa iniciará suas operações no Brasil no dia 30 de outubro, na Baixada Santista. | Foto: Reprodução/Instagram

Tempo de leitura 5

Marca da gigante chinesa Meituan estreia no país com investimento bilionário, tecnologia proprietária de ponta e uma inédita aposta em relacionamento personalizado com pequenos negócios, em um movimento que pode redefinir o setor no país

José Eduardo Camargo 29/10/2025 | 18:00

A chegada da Keeta ao Brasil marca um dos movimentos mais ousados do mercado de entrega nos últimos anos. Braço internacional da chinesa Meituan, a empresa chega ao país com um plano ambicioso: investir R$ 5,6 bilhões nos próximos cinco anos para conquistar restaurantes, entregadores e consumidores.

O Brasil, com um setor que movimenta hoje cerca de R$ 100 bilhões por ano, é visto como uma oportunidade estratégica para a expansão da empresa, principalmente pelo potencial de crescimento. 

Na China, a Meituan realiza mais de 80 milhões de entregas por dia e é considerada a maior empregadora privada do país. Seu modelo de negócios vai além do delivery tradicional, operando como um ecossistema digital que integra logística, inteligência artificial e apoio a restaurantes. A experiência acumulada em mercados como Hong Kong, Arábia Saudita e Catar serve de base para a operação brasileira, que será conduzida sob a marca Keeta. 

A proposta da Keeta para o Brasil contempla estabelecimentos, entregadores e consumidores. Para os restaurantes, oferece um modelo sem exclusividade, permitindo que os estabelecimentos continuem em outras plataformas. E traz um suporte personalizado nos moldes do que a Stone implantou no mercado de máquinas de cartão há alguns anos.

"O que mais me impressionou foi a conexão entre tecnologia e relacionamento humano com o pequeno negócio" diz Paulo Solmucci.

Com isso, pretende contar com equipes de apoio em todas as cidades, já com mais de mil pessoas contratadas para a expansão da operação.Os funcionários da empresa serão responsáveis por tirar dúvidas, orientar sobre a plataforma, sugerir promoções, ajudar a construir estratégias e resolver problemas dos empreendedores, numa abordagem um para um.

O atendimento personalizado ao pequeno negócio é um dos grandes diferenciais da estratégia em relação aos concorrentes, indo além do suporte técnico e incluindo relacionamento humano e empresarial. 

Para os entregadores, a Keeta promete ganhos extras e melhores condições de trabalho, com rotas otimizadas e equipamentos modernos. E para os consumidores, mais promoções e preços competitivos. A estratégia é conquistar rapidamente os três pilares do ecossistema de entrega por meio de tecnologia proprietária e apoio aos seus parceiros de negócio: 

  • Preços acessíveis: estimular os restaurantes a melhorar a eficiência, para que possam praticar preços que cabem no bolso dos consumidores. 
  • Logística: trazer mais eficiência nas entregas, melhores condições de trabalho e mais produtividade para os entregadores e para as empresas. A logística da Keeta não é apenas a entrega do motoboy, mas também a organização dos pedidos e a produtividade das empresas, evitando esperas desnecessárias tanto para o restaurante quanto para o entregador. 
  • Experiência: aprimorar a jornada dos consumidores, com embalagens mais modernas e adequadas a cada tipo de entrega, mantendo temperatura e sabor das refeições. A experiência não se resume à embalagem, mas envolve assertividade no prazo, integridade do produto e qualidade da entrega. 

A empresa enxerga um grande diferencial na tecnologia proprietária. A Meituan desenvolveu um sistema capaz de processar bilhões de rotas por hora, otimizando entregas com base em dados em tempo real. Essa eficiência algorítmica permite reduzir custos operacionais e buscar diferenciais em relação aos concorrentes. A promessa é de entregas mais rápidas, com menor tempo de espera e maior satisfação para todos os envolvidos.

Diferentemente do Brasil, onde há muitos motoboys esperando a comida ficar pronta, na China a tecnologia garante que o produto fique pronto antes do entregador chegar, evitando filas e desperdício de tempo. No entanto, o processo também faz com que o produto não fique mais de 4 ou 5 minutos parado depois de pronto, preservando a qualidade e evitando problemas na experiência do cliente. Esse equilíbrio é um diferencial importante para restaurantes e entregadores. 

A operação brasileira será comandada por Tony Qiu, vice-presidente global da Meituan, e Danilo Mansano, executivo com experiência no setor de tecnologia. Ambos têm a missão de adaptar o modelo chinês às complexidades locais, que incluem questões trabalhistas, culturais e regulatórias.

Toni Qiu, vice-presidente global da Meituan e Danilo Mansano, vice-presidente de Parcerias Estratégicas da Keeta no Brasil. | Foto: Jhonnie Melo

A equipe já está estruturada e trabalha com foco na implementação da infraestrutura algorítmica e na construção de parcerias locais. A operação foi iniciada na última semana de outubro, com um piloto na cidade de Santos–SP, e está sendo acompanhada de perto por todos os interessados no mercado, incluindo concorrentes, imprensa e associações do setor, pois representa não apenas uma prática comercial diferente, mas um novo modelo de negócio sendo iniciado no Brasil. 

O ambicioso plano de longo prazo inclui fazer com que o mercado, hoje com participação estimada de 80% do iFood, cresça e permita um ciclo virtuoso de eficiência e produtividade. Danilo Mansano explica:

“Hoje, estimamos que existam entre 50 e 60 milhões de consumidores ativos de entrega no Brasil, e acreditamos que esse número pode dobrar. Atualmente, cada consumidor faz cerca de três pedidos por mês, mas nossa expectativa é que essa frequência também aumente, como já acontece em outros mercados, como China e Arábia Saudita.” 

Impressões e tendências da visita à China 

A ofensiva da Keeta não passou despercebida. Em setembro, uma delegação brasileira, integrada por decisores de redes e empreendedores, visitou a sede da Meituan em Pequim (Paulo Solmucci, presidente da Abrasel, participou da comitiva, junto a nomes como Rodrigo Barros, da Boali, Otávio Pimentel, do KFC, Pedro Silveira, do grupo Alife Nino, Fernanda Rimbano, do Bob’s e João Baptista Silva Jr., do Rei do Mate).

O encontro com o fundador Wang Xing reforçou o interesse da empresa em colaborar com o setor de alimentação fora do lar no Brasil, especialmente com pequenos e médios restaurantes. A reunião foi marcada por discussões sobre inovação, redução de custos e parcerias estratégicas. 

Xing apresentou a experiência chinesa como modelo de redução de custos por meio de escala e inovação. Para ele, a Keeta se posiciona como parceira estratégica para enfrentar esse desafio, prometendo usar sua eficiência tecnológica para aliviar os custos dos restaurantes brasileiros. Para o fundador da Meituan, competir no mercado brasileiro não é um jogo de rouba-monte com a concorrência:

“A indústria vai realmente se transformar com mudanças estruturais, não apenas somando entrega ao modelo tradicional. Precisamos trabalhar juntos para promover essa transformação, tornando o serviço mais eficiente e acessível, especialmente para pequenos negócios.” 

Fernanda Rimbano, gerente nacional de delivery e canais digitais da rede Bob’s, explica que “o que mais me chamou atenção na Meituan, além de uma estratégia de anos muito bem implantada, foi que toda tomada de decisão é por dados". 

Além do reforço em dados da Meituan, Rimano destaca a relação eficiente entre demanda e qualidade nas entregas."Essa gestão consegue programar até a junção de pedidos da mesma área e de temperatura, otimizando a rota dos entregadores e preservando a qualidade do produto. No Brasil já vemos avanços nesse sentido, mas ainda temos espaço para explorar o potencial dos dados de forma tão integrada quanto eles fazem lá.” 

Apesar do entusiasmo, a Keeta enfrentará desafios, como explica Rodrigo Barros, CEO da Boali, marca de restaurantes de comida saudável:

“O mercado chinês é muito mais maduro em termos de consumo fora de casa. Lá, a entrega custa entre 5% e 10% acima do preço do salão, enquanto no Brasil esse número gira entre 20% e 30%. Essa maturidade impacta diretamente na precificação final da entrega, que é mais baixa, e isso está ligado à infraestrutura e à operação logística". 

Além disso, o empresário destaca a velocidade das entregas, dizendo: "O que mais me chamou atenção na Meituan foi a entrega em um raio de dois a três quilômetros com uma densidade absurda. Um mesmo entregador sai com seis ou sete pedidos. No Brasil, isso só seria viável em grandes centros como São Paulo, e mesmo assim em áreas muito específicas. Esse ganho de escala pode ser algo difícil de replicar por aqui em todas as cidades”. 

“A tecnologia proprietária da Meituan permitiu uma escala incrível, que levou à redução de custos e à democratização do acesso ao serviço”Paulo Solmucci. o ao serviço"

Eficiência operacional e oportunidades para o Brasil 

As mudanças demográficas na China, especialmente o envelhecimento da população e o aumento de famílias com apenas um membro, têm influenciado significativamente o comportamento do consumidor em relação à entrega. Com menos pessoas por domicílio e uma rotina urbana acelerada, cresce a demanda por conveniência, praticidade e refeições prontas.

Além disso, a maior presença de idosos conectados e jovens profissionais solteiros impulsiona o uso de plataformas digitais para alimentação, tanto para consumo imediato quanto para compras de ingredientes e refeições semipreparadas.

Esse cenário favorece o desenvolvimento de serviços de entrega altamente personalizados, com foco em velocidade, variedade e embalagens adaptadas às necessidades individuais. Isso também começa a se desenhar no Brasil, com uma demografia nos grandes centros cada vez mais parecida com a do país asiático. 

Rimbano destaca: “Uma tendência clara entre os consumidores chineses é a busca por conveniência combinada com personalização. A Meituan explora isso de forma inteligente ao atender dois perfis: quem quer receber a comida pronta rapidamente e quem prefere receber insumos para cozinhar em casa. No Brasil, isso nos inspira a pensar além da entrega tradicional, oferecendo soluções que atendam diferentes necessidades, seja praticidade ou experiência de preparo em casa, sempre de forma eficiente e personalizada.” 

“O principal diferencial é a maturidade do consumidor e a infraestrutura. O chinês já está habituado a consumir entrega com frequência e em diferentes momentos do dia. Além disso, há uma padronização maior nas embalagens e uma logística mais eficiente. No Brasil, temos barreiras culturais — como a preferência por consumir bebidas no local — e desafios tecnológicos e regulatórios que dificultam a replicação de certos modelos. Mas há muito espaço para inovação, especialmente se conseguirmos adaptar essas práticas à nossa realidade”, afirma Barros. 

Paulo Solmucci, presidente da Abrasel, destaca: “O que mais me impressionou foi a conexão entre tecnologia e relacionamento humano com o pequeno negócio". | Foto: Arquivo pessoal

Mas além do relacionamento íntimo entre o empreendedor e a plataforma de delivery, a otimização da logística da empresa também chamou a atenção de Solmucci. "A tecnologia proprietária da Meituan permitiu uma escala incrível, que levou à redução de custos e à democratização do acesso ao serviço. Mas o que realmente diferencia a Keeta é a aposta inédita em relacionamento personalizado com o pequeno empreendedor, com mais de mil pessoas na rua desde o início para entender as necessidades e construir soluções junto aos bares e restaurantes."

Sem abrir mão da rapidez na logística, a Keeta não abre mão de um relacionamento íntimo com os restaurantes, como afirma Solmucci. "Normalmente, quando se busca escala muito grande, acaba-se abrindo mão do relacionamento. Aqui, a Keeta faz diferente: aposta na proximidade e no atendimento personalizado, sem renunciar à eficiência.” 

Concorrência, inovação logística e próximos passos 

Um dos pilares da estratégia da Keeta que promete trazer mais impacto de inovação no Brasil é o da logística. E o sucesso passa muito por todas as questões que envolvem a entrega, tendo como ponto central embalar bem a comida — conceito que, na experiência internacional, é traduzido como “embalar bem” (do inglês “packaging”), expressão que reflete a importância de preservar a qualidade do produto até o consumidor final.

Embalar bem envolve três dimensões: qualidade, marca e experiência. A qualidade é um balanço entre integridade do produto e custo adequado, garantindo que o alimento chegue o mais próximo possível do que foi produzido na cozinha.  

Para Mansano, “a embalagem oportuniza exposição de marca, mas só contribui para a marca se a experiência se completaou seja, se chega no horário certo, com integridade e temperatura preservadas. A pior combinação possível é ter uma embalagem cara, com a marca bem visível, mas entregar uma experiência ruim por conta de selagem, temperatura ou outros fatores. Isso destrói a marca em vez de construir. Por isso, a Keeta testa as embalagens nas entregas e avalia como elas se comportam nas situações mais extremas de chegada. Esse padrão é o que determina a taxa de retenção e fidelidade do usuário ao serviço de entrega da marca”. 

Barros reforça: “Voltei muito interessado em desenvolver novos formatos e até considerar importações diretas da China. Lá, diferentes restaurantes usam a mesma embalagem, mudando apenas o logotipo. Isso reduz o custo e aumenta a eficiência. No Brasil, a diversidade gastronômica exige embalagens específicas para cada culinária — japonesa, italiana, saudável — o que pode dificultar um pouco a escala.” 

A promessa de entregas por drones é outro capítulo em que a empresa enxerga muito mais do que marketing. Na China, a Meituan já permite pedidos até mesmo na Grande Muralha. No Brasil, a adoção dependerá da regulamentação, que está em processo de revisão. A ANAC propôs o novo Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) nº 100, que pode permitir operações mais flexíveis.

As operações de entrega por drones no Brasil se enquadrarão nas categorias de risco definidas pelo novo sistema regulatório. A rota mais provável para a Keeta iniciar suas operações é a categoria específica, que exige análise de risco e aprovação da ANAC.

A meta de longo prazo é operar na categoria certificada, com entregas em larga escala em áreas densamente povoadas. A entrada da Keeta coincide com esse momento de transição regulatória. A empresa poderá influenciar o debate e se preparar para um ambiente mais favorável à inovação logística. 

Na ponta dos entregadores, a Keeta pretende introduzir no Brasil um equipamento inédito no setor de entrega: capacetes inteligentes para quem faz as entregas. O dispositivo, já testado na China, possui sensores de navegação, sistema de comunicação em tempo real e integração direta com os algoritmos da plataforma, permitindo que o entregador receba rotas otimizadas, alertas de segurança e informações sobre o pedido sem precisar manusear o celular. Além de aumentar a eficiência das entregas, o capacete é visto como uma inovação que pode melhorar as condições de trabalho e reduzir acidentes. 

Polêmicas na chegada ao Brasil 

O mercado de aplicativos de entrega na China é caracterizado por um duopólio acirrado, onde a Meituan consolida sua posição como líder incontestável, controlando historicamente cerca de 60% a 70% do setor de entrega de comida.

Seu principal concorrente é o Ele.me, apoiado pelo Grupo Alibaba, que, apesar de deter a maior parte da fatia restante, enfrenta uma pressão crescente não apenas da Meituan, mas também de novos entrantes como o Douyin (versão chinesa do TikTok), que utiliza sua imensa base de usuários e recursos financeiros para entrar agressivamente no segmento de “serviços de vida local” com entregas e cupons. A DiDi (que no Brasil opera a 99 e a 99Food) é uma gigante da mobilidade urbana (transporte por aplicativo), mas que tem fatia pequena no mercado de delivery de comida. 

Voltando ao cenário nacional, nos bastidores, a entrada da Keeta também vem causando impacto. A Keeta impetrou uma ação no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) contra a 99Food, alegando que a concorrente estaria praticando condutas anticompetitivas.

Além disso, o iFood tem manifestado preocupação com a contratação de seus executivos (com informações sensíveis) pelas empresas chinesas, levantando discussões sobre essa prática de mercado. Por sua vez, a 99Food questiona o uso de conceitos visuais de marca semelhantes pela Keeta, apontando possíveis conflitos de identidade comercial. 

Discussões à parte, a expectativa é que o novo quadro de concorrência traga mais equilíbrio ao mercado, com redução de custos e melhoria na qualidade dos serviços. A Keeta aposta alto tentando fugir da lógica de só brigar pelo cenário que já está posto. E o mercado brasileiro será o teste definitivo para sua ambição global. Se conseguir superar os desafios, poderá não apenas competir com o iFood, mas redefinir os padrões de eficiência e serviço no mercado. A corrida já começou. E promete ser intensa, tecnológica e bilionária. 

 

tags

Assine gratuitamente nossa newsletter

E descubra os segredos dos melhores bares e restaurantes!

Ao enviar seus dados, você concorda com os Termos e Condições e Políticas de Privacidade do Portal B&R.

Relacionados